Tomás Antônio Gonzaga foi o mais popular entre os poetas que participaram da Conjuração Mineira, em 1789. Não sabemos seu retrato. A imagem que guardamos de Gonzaga – os cabelos louros e muito compridos, as mãos magras, a face serena, muito jovem, belo e triste, a compor versos, na prisão – não é real: foi inteiramente imaginada pelo autor do quadro e ficou, para sempre, como o retrato íntimo que cada um de nós aprendeu a guardar do poeta. Sabemos, porém, que Gonzaga era um grande sedutor.
Tinha olhos azuis, era alegre, espirituoso e elegantíssimo. Dono de um guarda-roupa sempre abarrotado, Gonzaga gastava bem mais do que podia comprando roupas finas: calções de seda roxa e pano preto, camisas de Bretanha com babados, casacas de cambraia verde com chuva de prata, capotes em veludo cor de cereja caseados a ouro. Inclinado ao galanteio, o poeta foi um namorador incorrigível. Sabemos das Marílias que amou – ou imaginou amar – e dos poemas que escreveu.
Sabemos, também, da tentativa de Gonzaga de dar forma e realidade a um grande sonho: no isolamento das montanhas mineiras, desejam os conjurados a independência das Minas e a liberdade. Os versos de Gonzaga procuram o sonho e acusam uma luta perdida que outra luta vai substituir sem trégua nem desalento – são versos sem trapaça nem disfarce. Foi o próprio Gonzaga quem se definiu e à sua poesia:
Eu tenho um coração maior do que o mundo
E concluiu: “Um coração e basta!” A definição desse amor orientado por tudo o que tem relação com o mundo significa amor por todos os homens, sem a menor diferença – o que Gonzaga ama no seu próximo é que eles sejam iguais. O sentimento do amor é a oportunidade da comunhão do poeta com todos os seus semelhantes. Inclusive com os escravos.
GONÇALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 5ª Edição. 1975.
Tomás Antônio Gonzaga acrescentou a força de um afeto – a compaixão – como parte inseparável de uma reflexão política sobre a escravidão nas Minas setecentistas. O afeto da compaixão ingressou na linguagem política do século XVIII, sobretudo por obra de Rousseau. Sua manifestação perseguiu e motivou os revolucionários da época e, com mais intensidade, aqueles que fizeram a Revolução Francesa – ela significava a descoberta de uma sensibilidade diante do sofrimento alheiro. Gonzaga pode até não ter lido Rousseau, mas ele sabia manejar a força desse afeto. Em um cenário como o das Minas, em que a miséria abjeta e degradante estava presente por toda a parte, na forma da escravidão e do trabalho escravo, a compaixão só poderia se apresentar integralmente se ingressasse no domínio da política: um afeto natural comprometido com a preocupação elementar de que não se impõe sofrimento a outrem. Seu pressuposto é necessariamente político: a compaixão elimina a distância entre os homens; ela abre o coração do indivíduo no instante exato em que ele vê o sofrimento do seu semelhante, por mais distante de si que possa estar o sofredor.
O impacto da compaixão na linguagem política do século XVIII foi duplo. Em uma ponta, ela abriu as portas do domínio público e o poeta confrontou a sociedade com o intenso sofrimento dos miseráveis e dos destituídos – no caso da sociedade das Minas, com a condição abjeta dos escravos. Na outra ponta, a compaixão reforçava o elo de Gonzaga com os direitos do homem – por natureza, igualmente livres – ao descerrar, no coração dos indivíduos, espaço suficiente para o reconhecimento do sofrimento do outro. É certo que um poeta como Tomás Antônio Gonzaga estava comprometido somente com a compaixão; ele não abordou em sua poesia a incompatibilidade da instituição da escravidão com a implantação da liberdade. Mas é certo também que, em seus versos, a experiência da compaixão associada à tópica da escravidão, contribuiu para que o poeta revelasse algo dessa incompatibilidade: seja ao escancará-la à visão pública para que sua intensa penúria fosse do conhecimento comum, seja ao fermentar no coração de seu leitor o sentimento de repugnância inata ao reconhecer, naquele estado de abjeção desmedida a que o escravo foi condenado, o sofrimento de alguém semelhante a si próprio. Gonzaga era mesmo um grande poeta; soube tomar a compaixão em chave poética e mantê-la, ainda assim, intensamente política.
Cartas Chilenas (Carta III)
Tomás Antônio Gonzaga
(…) E sabes Doroteu, quem edifica
essa grande cadeia? Não, não sabes (…)
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também to digo: para uns negros,
que vivem, quando muito em vis cabanas,
fugidos dos senhores, lá nos matos (…)
e manda a um bom cabo que lhe traga
a quantos quilombolas se apanharem
em duras gargalheiras. Voa o cabo,
agarra a um e outro, e num instante
enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
os negros que tem culpas, prende e manda
também nas grandes levas, os escravos,
que não tem mais delitos que fugirem
às fomes e aos castigos que padecem
no poder de senhores desumanos. (…)
No pelourinho a escada já se assenta,
já se ligam dos réus os pés e os braços,
já se descem calções e se levantam
das imundas camisas rotas fraldas,
já pegam dous verdugos nos zorragues,
já descarregam golpes desumanos
já soam os gemidos e respingam
miúdas gotas de pisado sangue. (…)
Eu quisera
contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
mas tu, prezado amigo, tens o peito,
dos males que já leste, magoado;
por isso é justo que suspenda a história (…)
Em seus versos, Gonzaga introduziu certas palavras que forneceram à sua poética um timbre tipicamente local, particularmente realista e de fácil trânsito entre diferentes estratos sociais. Em sua poesia, os locais públicos de Vila Rica estão sempre fervilhando de gente nas ruas, contaminados pelas múltiplas e tumultuadas funções da vida urbana e Gonzaga oferece ao leitor uma visada minuciosa e por vezes moralista desse burburinho. Aliás, quando Gonzaga resolve ser moralista, não é de meias-medidas: seus comentários desdenhosos à profunda mestiçagem que envolve todos os extratos sociais da capitania, seu desprezo diante da mulata que, em trajes masculinos, dança o
quente lundu e no vil batuque
revelam o que ele considera de péssimo gosto e moralmente vicioso. Contudo, nada disso impede que o poeta lance esse segundo olhar que bisbilhota a geografia oculta de Vila Rica, seus espaços furtivos, sua natureza mestiça e torna tudo domínio público. Não escapa coisa alguma: nem as “tabernas fedorentas” em cujas prateleiras se amontoam “os queijos, a cachaça, o negro fumo”, nem as “belas moças movidas do balanço, dão no vento milhares e milhares de embigadas”. O sol de outubro, por sua vez, se deixa ver livre do disfarce da convenção árcade e carrega consigo nuvens de tanajuras, “formigas que criam com as chuvas longas asas”; por último, na praça, a Cadeia, um soberbo edifício, “sobre ossos de inocente construído”, serve de opróbrio ao governador corrupto e brutal que mandou erguê-lo.
Marília de Dirceu (Parte II, Lira XXXVII)
Tomás Antônio Gonzaga
Meu sonoro Passarinho,
Se sabes do meu tormento,
E buscas dar-me, cantando,
Um doce contentamento,
Ah! não cantes, mais não cantes,
Se me queres ser propício;
Eu te dou em que me faças
Muito maior benefício.
Ergue o corpo, os ares rompe,
Procura o Porto da Estrela,
Sobe à serra, e se cansares,
Descansa num tronco dela,
Toma de Minas a estrada,
Na Igreja nova, que fica
Ao direito lado, e segue
Sempre firme a Vila Rica.
Entra nesta grande terra,
Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
Tem um palácio defronte.
Ele tem ao pé da porta
Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
A minha Marília bela. (…)
Cartas Chilenas (Carta XI)
Tomás Antônio Gonzaga
(…) Enquanto, Doroteu, a nossa Chile
Em toda parte tinha, à flor da terra,
Extensas e abundantes minas de ouro,
Enquanto os taberneiros ajuntavam
Imenso cabedal, em poucos anos,
Sem terem, nas tabernas fedorentas,
Outros mais sortimentos, que não fossem
Os queijos, a cachaça, o negro fumo
E sobre as prateleiras poucos frascos,
Enquanto, enfim, as negras quitandeiras,
À custa dos amigos, só trajavam
Vermelhas capas de galões cobertas,
De galacés e tissos ricas saias (…)
Marília de Dirceu (Parte III, Lira III)
Tomás Antônio Gonzaga
Tu não verás, Marília, cem cativos
Tirarem o cascalho, e a rica, terra,
Ou dos cercos dos rios caudalosos,
Ou da minada serra.
Não verás separar ao hábil negro
Do pesado esmeril a grossa areia,
E já brilharem os granetes de ouro
No fundo da bateia.
Não verás derrubar os virgens matos;
Queimar as capoeiras ainda novas;
Servir de adubo à terra a fértil cinza;
Lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar negros pacotes
Das secas folhas do cheiroso fumo;
Nem espremer entre as dentadas rodas
Da doce cana o sumo.
Verás em cima da espaçosa mesa
Altos volumes de enredados feitos;
Ver-me-ás folhear os grande livros,
E decidir os pleitos.
Enquanto revolver os meus consultos.
Tu me farás gostosa companhia,
Lendo os fatos da sábia mestra história,
E os cantos da poesia. (…)
Quando desembarcaram no Rio de Janeiro em 1817, os cientistas austríacos Johann Baptista Von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Von Martius (1794-1868) ficaram tão impressionados com o ambiente sonoro do Brasil que decidiram publicar um “apêndice musical” à extensa obra Viagens do Brasil. Em diversos depoimentos, os cientistas registraram que, diferentemente da música admirada nos salões, as ruas estavam repletas de “simples artesãos”, cantadores de modinhas impossíveis de ouvir “sem com elas ficar vivamente comovido”. Não surpreende que uma das primeiras canções apresentadas pelos cientistas se chama Acaso são estes. Não conhecemos o autor da melodia, mas a letra nada mais é do que a Lira V da primeira parte de Marília de Dirceu.
O ritmo fluente, a melodia e a singeleza dos versos que falam direto ao coração, fazem das liras de Tomás Antônio Gonzaga um dos poetas mais requisitados pelos compositores de sua época, quando nasceram as bases do que viria a ser a canção popular brasileira, através de dois gêneros musicais muito populares: a modinha e o lundu. O lundu diferencia-se das modinhas principalmente pelo caráter jocoso e sensual, lançando mão de trocadilhos com duplo sentido que, por vezes, satirizava os costumes da época. Mas antes disso, era uma dança, cujo ritmo de acompanhamento básico era o da percussão dos batuques dos negros escravizados e a coreografia imitava a dança espanhola denominada fandango.
As primeiras notícias da modinha no Brasil datam do início do século XVIII. No livro Compêndio narrativo do peregrino da América, publicado por Nuno Marques Pereira entre 1718 e 1725, sabemos que essas tradicionais canções estavam sendo ameaçadas pelas “músicas lascivas”, que corrompiam as mulheres pela sugestão dos suspiros e dos versos amorosos. Na segunda metade do século XVIII, ainda era costume designar pelo nome genérico de “modas” as cantigas em geral. Foi quando Domingos Caldas Barbosa apareceu cantando a “tafularia do amor, a meiguice do Brasil e em geral a moleza americana”, que as pessoas passaram a se referirem as tais “modas novas” usando o diminutivo modinha.
Filho de pai branco e mãe negra de Angola, Domingos Caldas Barbosa nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1740. Conquistou grande popularidade em Lisboa, frequentando os salões aristocráticos da capital, sempre acompanhado de sua viola de arame, chocou a corte de Dona Maria I e o quadro moral das elites, ao ofender o pudor das donzelas com
cantigas de amor tão descompostas
Além de músico, Domingos Caldas Barbosa era poeta membro reconhecido da Arcádia Lusitana. Uma de suas influências mais decisivas, Tomás Antônio Gonzaga, marca presença em sua obra, que foi reunida no livro Viola de Lereno: coleção de suas cantigas, oferecidas a seus amigos, publicado em dois volumes (o primeiro em 1798 e o segundo em 1826).
Em meio aos versos musicados, no segundo volume está o poema Marília Brasileira nas Caldas, com a indicação “modinha”. Naquele momento, Marília começava a se transformar em símbolo nacional, de um Brasil recém-proclamado independente. Ao longo de todo o século XIX, as referências as liras de Gonzaga continuaram: um dos mais célebres compositores do Primeiro Império, o carioca Cândido Inácio da Silva (1808-1838), fez sucesso com a gravação da modinha Minha Marília não mora mais em mim. A poesia de Tomás Antônio Gonzaga parece que foi feita para ser cantada: tanto pelo lirismo sentimental dos versos de Marília de Dirceu, quanto pelas descrições das danças presentes nas Cartas Chilenas, a obra do poeta oferece uma chave possível para compreensão da origem do moderno cancioneiro popular brasileiro.
Marília de Dirceu (Parte I, Lira V)
Tomás Antônio Gonzaga
Acaso são estes
Os sítios formosos.
Aonde passava
Os anos gostosos?
São estes os prados,
Aonde brincava,
Enquanto passava
O gordo rebanho,
Que Alceu me deixou?
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.(…)
Meus versos alegre
Aqui repetia:
O eco as palavras
Três vezes dizia,
Se chamo por ele,
Já não me responde;
Parece se esconde,
Casado de dar-me
Os ais, que lhe dou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.(…)
Minha alma, que tinha
Liberta a vontade,
Agora já sente
Amor, e saudade,
Os sítios formosos me agradaram,
Ah! Não se mudaram;
Mudaram-se os olhos,
De triste que estou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou. (…)
Cartas Chilenas (Carta XI)
Tomás Antônio Gonzaga
(…) Fingindo a moça que levanta a saia
E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços;
Então o machacaz, mexendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz–”eu pago, eu pago”–e, de repente,
Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta,
Te honravam, c’os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e palácios! (…)
Marília brasileira nas Caldas
Domingos Caldas Barbosa
Pastores que aflitos
Saúde buscais,
Em vão esperais
A Amor escapar
Amor tem Marília
Por ela ensinada,
E quando lhe agrada
Vos sabe matar.
Fugi de seus Olhos
Tão vivos, e belos,
Se a Amores, e a Zelos
Quereis escapar
Com outras pastoras
Eu não a confundo,
Que um novo mundo
Vem neste brilhar.
Em vão presumis
De ter liberdade,
Que a livre vontade
Vos vem cativar.
Temei dos seus olhos
O doce veneno
Que ao pobre Lereno
Já fez Palpitar
Fugi do seu riso
Que mata brincando,
Que zomba matando
E a rir vê chorar. (…)
Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.