1. Perfil biográfico

Vinicius de Moraes (1913-1980)

“Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural”. A definição foi dada por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, poeta e amigo, que fez questão de emendar:

Eu queria ter sido Vinicius de Moraes.

Filho de um doutor em latim e uma pianista cresceu entre a retórica empolada do pai e a sensibilidade musical da mãe. Seja como for, a rígida formação jesuíta do Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, não impediu o jovem Vinicius de Moraes de arriscar as primeiras linhas sobre aquele tema que iria perseguir ao longo de toda sua escrita: o amor pela mulher. Converteu-se em “poeta da paixão”. Havia, num primeiro momento, se deixado levar por uma postura “transcendental, frequentemente mística”, como definiu tempos depois, na Advertência de sua Antologia poética. Mas, logo tratou de dar um giro em sua escrita para se aproximar do mundo material, do cotidiano, seguindo os passos de Manuel Bandeira – “Poeta, pai, áspero irmão”.

 

Vinicius de Moraes tornou-se conhecido como o “poeta da paixão”, mas de maneira alguma se reduziu a esta classificação. Musicou a poesia, poetou a música, filmou a literatura e fez Orfeu e Eurídice sambarem em um morro do Rio de Janeiro. Mais do que apenas poeta renomado ou mestre letrista, Vinicius foi um alquimista da cultura brasileira.
Vinicius de Moraes, 05/03/1970, Buenos Aires, Argentina. Revista Gente y la actualidad, año 5, n.241. Foto de Ricardo Alfieri. Fonte: Domínio Público/Wikimedia Commons.

Como diplomata resolveu dar novo giro: embrenhou-se de vez pela canção popular.  Afinal, desde os 15 anos guardava composições como Loura ou morena e Canção da noite. “Não tive a coragem do Vinicius”, confessou certa vez, acanhado, o poeta Pablo Neruda. “Era o que eu mais gostaria de ter feito: letras de música. Mas tive medo de que me desprezassem.” Sem dar a mínima para o pudor purista do amigo chileno, Vinicius de Moraes – sempre acompanhado de seu “cachorro engarrafado”, o uísque – passou a colecionar parcerias musicais. Sua parceria com Tom Jobim – iniciada em 1956 para a composição da trilha sonora de Orfeu da Conceição – e o violão de João Gilberto foram os responsáveis por uma das maiores guinadas da canção popular brasileira, a Bossa Nova. Depois de Tom Jobim, completou sua “santíssima trindade” – como gostava de brincar – com Carlos Lyra e Baden Powell. O amém, dizia, ficou por conta de Toquinho, parceiro que o acompanhou até o dia de sua morte.

Camarada, boêmio, personagem da noite, o poeta tornou-se, enfim, o artista do encontro, um alquimista de linguagens, feiticeiro da cultura.

Ando onde há espaço
Meu tempo é quando.

Filho de Oxalá, viveu o amor como religião e a religiosidade como erotismo, com a devoção de quem sabe que “a vida só se dá pra quem se deu”.  Poeta de veredas, despiu-se do absoluto e ousou explorar os campos da literatura, da canção, do teatro e do cinema, animado por uma única certeza: “amava era amar”.


Obras completas:

  • O caminho para a distância (1933)
  • Forma e exegese (1935)
  • Ariana, a mulher (1936)
  • Novos poemas (1938)
  • Cinco elegias (1943)
  • Poemas, sonetos e baladas (1946)
  • Pátria minha (1949)
  • Antologia poética (1954)
  • Livro de sonetos (1957)
  • Novos Poemas II (1959)
  • O mergulhador (1968)
  • A arca de Noé (1970)

Para saber mais:

CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Série Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006.

2. Entre a paixão profana e o amor divino

A utopia do amor total em Vinicius de Moraes

Foi no século XVI que o sonetista Luís de Camões estabeleceu uma das mais belas definições do amor que há na língua portuguesa: “Amor é fogo que arde sem se ver”. Sem arredar o pé dessa tradição lírica, Vinicius de Moraes, contudo, deu um passo na direção de outra definição. Sim: amor

é ferida que dói e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer.

Acontece que, antes de tudo, amor é chama. Ao modificar a perspectiva sobre o lugar conferido pela poesia a sentimento tão nobre, o poeta cantou – e viveu – a intensidade do amor em sua variante mais mundana: a paixão, essa experiência vertiginosa, deslumbrante, que dá sensação de eternidade, mas que, como tudo no mundo dos homens acaba.

De repente, não mais que de repente.

Sabendo, portanto, desse traço efêmero do amor, Vinicius de Moraes tratou de querer ”vivê-lo a cada vão momento”, com o tom solene de uma religião, ”dentro da eternidade e a cada instante”. Mas, diante do medo da solidão – ”fim de que ama” –, o poeta da paixão também tem lá sua utopia: a do amor total, ”a esperança divina/de amar em paz…”; um grande amor, calmo, sereno, que, de amar mais do que pode, resista ao tempo dos homens até se deparar com o instante irremediável da morte, o salto para o eterno absoluto.

 

“Poeta, pai, áspero irmão”. Foi assim que Vinicius de Moraes definiu o poeta modernista Manuel Bandeira: influência decisiva para a escrita de uma poesia mais próxima do mundo material e do cotidiano.
Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, c.1940. Copyright ©by V.M. Empreendimentos Artísticos e Culturais LTDA.

 

 

 Soneto de contrição
Vinicius de Moraes

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma…

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida. (…)

 

(…) Para viver um grande amor direito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito – peito de remador.

É sempre necessário ter em vista um crédito de rosas no florista – muito mais, muito mais que na modista! – para aprazer ao grande amor. (…)

 

 Soneto de inspiração
Vinicius de Moraes

Não te amo como uma criança, nem
Como um homem e nem como um mendigo
Amo-te como se ama todo o bem
Que o grande mal da vida traz consigo.

Não é nem pela calma que me vem
De amar, nem pela glória do perigo
Que me vem de te amar, que te amo; digo
Antes que por te amar não sou ninguém.

Amo-te pelo que és, pequena e doce
Pela infinita inércia que me trouxe
A culpa é de te amar — soubesse eu ver

Através da tua carne defendida
Que sou triste demais para esta vida
E que és pura demais para sofrer. (…)

 

(…) Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá
O encontro  desse olhar.
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus
Me sinto incendiar. (…)

 

 Soneto de fidelidade
Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure. (…)

 

 Monólogo de Orfeu
Vinicius de Moraes

Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada…
E sabes de uma coisa? Cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, – que é que eu sei! Essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem – nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! E me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice…
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura! Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres – que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo!
Vai tua vida
Teu caminho é de paz e amor
A tua vida
É uma linda canção de amor
Abre os teus braços e canta a última esperança
A esperança divina
De amar em paz…
Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver!
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar (…)

 

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar (…)

 

 Soneto do amor total
Vinicius de Moraes

Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude. (…)

 

 Soneto da hora final
Vinicius de Moraes

Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente
O beijo leve de uma aragem fria.
Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.
Ao transpor as fronteiras do Segredo
Eu, calmo, te direi: — Não tenhas medo
E tu, tranquila, me dirás: — Sê forte.
E como dois antigos namorados
Noturnamente triste e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte. (…)

 

(…) Se invés de minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual melhor morrer (…)

 

 Poema de aniversário
Vinicius de Moraes

Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte…
Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.
Quisera dar-te também o mar onde nadei menino, o tranqüilo mar de ilha em que perdia e em que mergulhava, e de onde trazia a forma elementar de tudo o que existe no espaço acima – estrelas mortas, meteoritos submersos, o plancto das galáxias, a placenta do Infinito.

E mais, quisera dar-te as minhas loucas carreiras à toa, por certo em premonitória busca de teus braços, e a vontade de grimpar tudo de alto, e transpor tudo de proibido, e os elásticos saltos dançarinos para alcançar folhas, aves, estrelas – e a ti mesma, luminosa Lucina, e derramar claridade em mim menino.

Ah, pudesse eu dar-te o meu primeiro medo e a minha primeira coragem; o meu primeiro medo à treva e a minha primeira coragem de enfrentá-la, e o primeiro arrepio sentido ao ser tocado de leve pela mão invisível da Morte.

E o que não daria eu para ofertar-te o instante em que, jazente e sozinho no mundo, enquanto soava em prece o cantochão da noite, vi tua forma emergir do meu flanco, e se esforçar, imensa ondina arquejante, para se desprender de mim; e eu te pari gritando, em meio a temporais desencadeados, roto e imundo do pó da terra.
Gostaria de dar-te, Namorada, aquela madrugada em que, pela primeira vez, as brancas moléculas do papel diante de mim dilataram-se ante o mistério da poesia subitamente incorporada; e dá-Ia com tudo o que nela havia de silencioso e inefável – o pasmo das estrelas, o mudo assombro das casas, o murmúrio místico das árvores a se tocarem sob a Lua.

E também o instante anterior à tua vinda, quando, esperando-te chegar, relembrei-te adolescente naquela mesma cidade em que te reencontrava anos depois; e a certeza que tive, ao te olhar, da fatalidade insigne do nosso encontro, e de que eu estava, de um só golpe, perdido e salvo.

Quisera dar-te, sobretudo, Amada minha, o instante da minha morte; e que ele fosse também o instante da tua morte, de modo que nós, por tanto tempo em vida separados, vivêssemos em nosso decesso uma só eternidade; e que nossos corpos fossem embalsamados e sepultados juntos e acima da terra; e que todos aqueles que ainda se vão amar pudessem ir mirar-nos em nosso último leito; e que sobre nossa lápide comum jazesse a estátua de um homem parindo uma mulher do seu flanco; e que nela houvesse apenas, como epitáfio, estes versos finais de uma cançâo que te dediquei:
…dorme, que assim

dormirás um dia

na minha poesia

de um sono sem fim (…)

3. Meu tempo é quando

As personas poéticas de Vinicius de Moraes

Em sua trajetória, Vinicius de Moraes assumiu diferentes personas poéticas. Por essa razão, a reflexão sobre a poesia e o lugar do poeta no mundo não poderia deixar ser um dos temas centrais em sua obra. Poeta diplomata, poetinha, poeta da paixão. Mente aberta e irrequieta, nunca hesitou em mudar de percursos, seguir novos rumos, tanto na vida quanto na arte. Seus versos não se prenderam nem mesmo aos livros, ao papel. Sem pensar duas vezes, mergulhou no universo das canções. Passou a ser também o poeta de Orfeu da Conceição, da Bossa Nova, da União dos Estudantes, dos afro-sambas, da ternura pelos temas infantis, do afeto pelas coisas cotidianas. Sua poesia não se resumiu ao ofício de criar poemas e letras para canções. Ele foi talvez o único que ousou viver a poesia em estado natural e tempo integral. Fez de sua própria vida uma existência literária. Foi, acima de tudo, um “poeta aprendiz”.

 

“Vou ao cinema da mesma forma que ando, como respiro e durmo”. Além da poesia, outra grande paixão de Vinicius de Moraes foi o cinema. Filiado ao “Chaplin Club”, começou a escrever críticas ainda na década de 1930 e não parou mais.

 

 

 Poética
Vinicius de Moraes

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando. (…)

 

(…) Por isso fazia 
Seu grão de poesia 
E achava bonita 
A palavra escrita. 
Por isso sofria 
De melancolia 

Sonhando o poeta 
Que quem sabe um dia 
Poderia ser. (…)

 

 Poética II
Vinicius de Moraes

(…) Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
– Entrai, irmãos meus! (…)

 

(…) Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai

Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não (…)

4. A noite

como momento erótico da criação

Filha de Kháos na teogonia grega, a Noite (Nýks) constitui o momento original de criação do Cosmos e, portanto, é condição básica para manifestação de Eros – energia poética, força animadora da beleza e riqueza do mundo. Erótica, a noite aparece na obra de Vinicius de Moraes como revelação da vida. De natureza materna, ela carrega o potencial de possibilidades desconhecidas. As mesmas que esperam quem as procure e, na busca pelo vigor da potência da noite, tenha a coragem de experimentá-las. É verdade que, em sua biografia, Vinicius de Moraes encarnou a própria agitação de um tipo específico de noite: aquela musical, festiva, tumultuada. “De manhã escureço/De dia tardo/De tarde anoiteço/De noite ardo”. Mas é como se através de seus amores, desilusões e porres, a noite se lembrasse daquela origem caótica para, na forma de poesia, dar lugar ao impulso criativo da palavra.

 

Vinicius de Moraes foi um dos fundadores da Bossa Nova na década de 1950. Em 1963, aproximou-se ainda mais da nova geração de artistas e estreou o espetáculo musical Pobre menina rica, ao lado de Nara Leão e Carlos Lyra.
Cartaz do espetáculo Pobre menina rica, 1963. Copyright ©by V.M. Empreendimentos Artísticos e Culturais LTDA.

 

 

 A máscara da noite 
Vinicius de Moraes

(…) Sim, essa tarde conhece todos os meus pensamentos
Todos os meus segredos e todos os meus patéticos anseios
Sob esse céu como uma visão azul de incenso
As estrelas são perfumes passados que me chegam…
 
Sim! essa tarde que eu não conheço é uma mulher que me chama
E eis que é uma cidade apenas, uma cidade dourada de astros
Aves, folhas silenciosas, sons perdidos em cores
Nuvens como velas abertas para o tempo…

Não sei, toda essa evocação perdida, toda essa música perdida
É como um pressentimento de inocência, como um apelo…
Mas para que buscar se a forma ficou no gesto esvanecida
E se a poesia ficou dormindo nos braços de outrora…

Como saber se é tarde, se haverá manhã para o crepúsculo
Nesse entorpecimento, neste filtro mágico de lágrimas?
Orvalho, orvalho! desce sobre os meus olhos, sobre o meu sexo
Faz-se surgir diamante dentro do sol!

Lembro-me!… como se fosse a hora da memória
Outras tardes, outras janelas, outras criaturas na alma
O olhar abandonado de um lago e o frêmito de um vento
Seios crescendo para o poente como salmos…

Oh, a doce tarde! Sobre mares de gelo ardentes de revérbero
Vagam placidamente navios fantásticos de prata
E em grandes castelos cor de ouro, anjos azuis serenos
Tangem sinos de cristal que vibram na imensa transparência!

Eu sinto que essa tarde está me vendo, que essa serenidade está me vendo
Que o momento da criação está me vendo neste instante doloroso de sossego em mim mesmo
Oh criação que estás me vendo, surge e beija-me os olhos
Afaga-me os cabelos, canta uma canção para eu dormir!

És bem tu, máscara da noite, com tua carne rósea
Com teus longos xales campestres e com teus cânticos
És bem tu! ouço teus faunos pontilhando as águas de sons de flautas
Em longas escalas cromáticas fragrantes…

Ah, meu verso tem palpitações dulcíssimas! — primaveras!
Sonhos bucólicos nunca sonhados pelo desespero
Visões de rios plácidos e matas adormecidas
Sobre o panorama crucificado e monstruoso dos telhados!

Por que vens, noite? por que não adormeces o teu crepe
Por que não te esvais — espectro — nesse perfume tenro de rosas?
Deixa que a tarde envolva eternamente a face dos deuses
Noite, dolorosa noite, misteriosa noite!

Oh tarde, máscara da noite, tu és a presciência
Só tu conheces e acolhes todos os meus pensamentos
O teu céu, a tua luz, a tua calma
São a palavra da morte e do sonho em mim! (…)

 

(…) Ou seria a flor da noite 
A face oculta atrás da aurora 
Por quem o homem luta 
Desde nunca até agora 
A louca aprisionada 
Pelos monstros do poente 
E que avisa e grita alucinadamente: 
Olha a flor da noite (…)

 

 Vazio
Vinicius de Moraes

A noite é como um olhar longo e claro de mulher.
Sinto-me só.
Em todas as coisas que me rodeiam
Há um desconhecimento completo da minha infelicidade.
A noite alta me espia pela janela
E eu, desamparado de tudo, desamparado de mim próprio
Olho as coisas em torno
Com um desconhecimento completo das coisas que me rodeiam.

Vago em mim mesmo, sozinho, perdido
Tudo é deserto, minha alma é vazia
E tem o silêncio grave dos templos abandonados.
Eu espio a noite pela janela
Ela tem a quietação maravilhosa do êxtase.
Mas os gatos embaixo me acordam gritando luxúrias
E eu penso que amanhã…
Mas a gata vê na rua um gato preto e grande
E foge do gato cinzento.

Eu espio a noite maravilhosa
Estranha como um olhar de carne.
Vejo na grade o gato cinzento olhando os amores da gata e do gato preto
Perco-me por momentos em antigas aventuras
E volto à alma vazia e silenciosa que não acorda mais
Nem à noite clara e longa como um olhar de mulher
Nem aos gritos luxuriosos dos gatos se amando na rua. (…)

 

 Imitação de Rilke
Vinicius de Moraes

(…) Alguém que me espia do fundo da noite 
Com olhos imóveís brilhando na noite 
Me quer. 

Alguém que me espia do fundo da noite 
(Mulher que me ama, perdida na noite?) 
Me chama. 

Alguém que me espia do fundo da noite 
(És tu, Poesia, velando na noite?) 
Me quer. 

Alguém que me espia do fundo da noite 
(Também chega a Morte dos ermos da noite…) 
Quem é? (…)

5. O mar é rua; a praia, encruzilhada

O poeta e a cidade

O poeta moderno retrata o cotidiano da cidade por meio das ruas. Vinicius de Moraes cantou a cidade através do mar. Mas não se trata daquele mundo de água ondulante que engole e, no limite, se confunde com os pescadores de Dorival Caimmy. É certo que para Vinicius “a vida vem em ondas como o mar”. Acontece que seu olhar é antes de tudo praiano. A faixa de areia que separa o asfalto da espuma salgada é o cenário ideal para contemplar a bela mulher que passa, o barquinho da bossa nova ou mesmo “sentir preguiça no corpo/e numa esteira de vime/tomar uma água de coco”. A praia, portanto, é o ponto por excelência do encontro: seja o encontro exuberante entre céu, água e terra; seja o mundano encontro dos homens. Não por acaso, foi onde o poeta teve sua primeira experiência amorosa.

 

Uma prática acompanhou Vinicius de Moraes durante boa parte de sua vida: realizar criações em parceria. Tudo começou quando compôs a trilha sonora da peça “Orfeu da Conceição” ao lado do maestro Tom Jobim, em 1956. Momento em que mergulhou de vez no universo da canção popular.
Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, c.1951. Copyright ©by V.M. Empreendimentos Artísticos e Culturais LTDA.

 

 

 Rosário
Vinícius de Moraes

(…) E eu que era um menino puro 
Não fui perder minha infância 
No mangue daquela carne! 
Dizia que era morena 
Sabendo que era mulata 
Dizia que era donzela 
Nem isso não era ela 
Era uma moça que dava. 
Deixava… mesmo no mar 
Onde se fazia em água 
Onde de um peixe que era 
Em mil se multiplicava 
Onde suas mãos de alga 
Sobre meu corpo boiavam 
Trazendo à tona águas-vivas 
Onde antes não tinha nada. 
Quanto meus olhos não viram 
No céu da areia da praia 
Duas estrelas escuras 
Brilhando entre aquelas duas 
Nebulosas desmanchadas 
E não beberam meus beijos 
Aqueles olhos noturnos 
Luzindo de luz parada 
Na imensa noite da ilha! 
Era minha namorada 
Primeiro nome de amada 
Primeiro chamar de filha… 
Grande filha de uma vaca! 
Como não me seduzia 
Como não me alucinava 
Como deixava, fingindo 
Fingindo que não deixava! 
Aquela noite entre todas 
Que cica os cajus! travavam! 
Como era quieto o sossego 
Cheirando a jasmim-do-cabo! 
Lembro que nem se mexia 
O luar esverdeado 
Lembro que longe, nos longes 
Um gramofone tocava 
Lembro dos seus anos vinte 
Junto aos meus quinze deitados 
Sob a luz verde da lua. 
Ergueu a saia de um gesto 
Por sobre a perna dobrada 
Mordendo a carne da mão 
Me olhando sem dizer nada 
Enquanto jazente eu via 
Como uma anêmona na água 
A coisa que se movia 
Ao vento que a farfalhava. 
Toquei-lhe a dura pevide 
Entre o pêlo que a guardava 
Beijando-lhe a coxa fria 
Com gosto de cana brava. 
Senti à pressão do dedo 
Desfazer-se desmanchada 
Como um dedal de segredo 
A pequenina castanha 
Gulosa de ser tocada. 
Era uma dança morena 
Era uma dança mulata 
Era o cheiro de amarugem 
Era a lua cor de prata 
Mas foi só naquela noite! 
Passava dando risada 
Carregando os peitos loucos 
Quem sabe para quem, quem sabe? 
Mas como me seduzia 
A negra visão escrava 
Daquele feixe de águas 
Que sabia ela guardava 
No fundo das coxas frias! 
Mas como me desbragava 
Na areia mole e macia! 
A areia me recebia 
E eu baixinho me entregava 
Com medo que Deus ouvisse 
Os gemidos que não dava! 
Os gemidos que não dava… 
Por amor do que ela dava 
Aos outros de mais idade 
Que a carregaram da ilha 
Para as ruas da cidade 
Meu grande sonho da infância 
Angústia da mocidade.(…)

 

Olha que coisa mais linda 
Mais cheia de graça 
É ela menina 
Que vem e que passa 
Num doce balanço 
A caminho do mar.
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar (…)

 

 Balada da praia do Vidigal
Vinícius de Moraes

A lua foi companheira 
Na praia do Vidigal 
Não surgiu, mas mesmo oculta 
Nos recordou seu luar 
Teu ventre de maré cheia 
Vinha em ondas me puxar 
Eram-me os dedos de areia 
Eram-te os lábios de sal. 

Na sombra que ali se inclina 
Do rochedo em miramar 
Eu soube te amar, menina 
Na praia do Vidigal… 
Havia tanto silêncio 
Que para o desencantar 
Nem meus clamores de vento 
Nem teus soluços de água. 
Minhas mãos te confundiam 
Com a fria areia molhada 
Vencendo as mãos dos alísios 
Nas ondas da tua saia. 
Meus olhos baços de brumas 
Junto aos teus olhos de alga 
Viam-te envolta de espumas 
Como a menina afogada. 
E que doçura entregar-me 
Àquela mole de peixes 
Cegando-te o olhar vazio 
Com meu cardume de beijos! 
Muito lutamos, menina 
Naquele pego selvagem 
Entre areias assassinas 
Junto ao rochedo da margem. 
Três vezes submergiste 
Três vezes voltaste à flor 
E te afogaras não fossem 
As redes do meu amor. 
Quando voltamos, a noite 
Parecia em tua face 
Tinhas vento em teus cabelos 
Gotas d’água em tua carne. 
No verde lençol da areia 
Um marco ficou cravado 
Moldando a forma de um corpo 
No meio da cruz de uns braços. 
Talvez que o marco, criança 
Já o tenha lavado o mar 
Mas nunca leva a lembrança 
Daquela noite de amores 
Na praia do Vidigal. (…)

 

Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar
Depois na praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de coco
É bom (…)

 

 Balada das meninas de bicicleta 
Vinícius de Moraes

Meninas de bicicleta 
Que fagueiras pedalais 
Quero ser vosso poeta! 
Ó transitórias estátuas 
Esfuziantes de azul 
Louras com peles mulatas 
Princesas da zona sul: 
As vossas jovens figuras 
Retesadas nos selins 
Me prendem, com serem puras 
Em redondilhas afins. 
Que lindas são vossas quilhas 
Quando as praias abordais! 
E as nervosas panturrilhas 
Na rotação dos pedais: 
Que douradas maravilhas! 
Bicicletai, meninada 
Aos ventos do Arpoador 
Solta a flâmula agitada 
Das cabeleiras em flor 
Uma correndo à gandaia 
Outra com jeito de séria 
Mostrando as pernas sem saia 
Feitas da mesma matéria. 
Permanecei! vós que sois 
O que o mundo não tem mais 
Juventude de maiôs 
Sobre máquinas da paz 
Enxames de namoradas 
Ao sol de Copacabana 
Centauresas transpiradas 
Que o leque do mar abana! 
A vós o canto que inflama 
Os meus trint’anos, meninas 
Velozes massas em chama 
Explodindo em vitaminas. 
Bem haja a vossa saúde 
À humanidade inquieta 
Vós cuja ardente virtude 
Preservais muito amiúde 
Com um selim de bicicleta 
Vós que levais tantas raças 
Nos corpos firmes e crus: 
Meninas, soltai as alças 
Bicicletai seios nus! 
No vosso rastro persiste 
O mesmo eterno poeta 
Um poeta – essa coisa triste 
Escravizada à beleza 
Que em vosso rastro persiste, 
Levando a sua tristeza 
No quadro da bicicleta. (…)

6. “Mas quem é essa misteriosa?”

A mulher na poesia de Vinicius de Moraes

Certa vez, ao comentar o giro dado por sua poesia na direção do cotidiano, Vinicius de Moraes confessou: “Fui salvo pela mulher”. O poeta não poderia estar mais certo. Isto porque Vinicius só se aproximou do seu grande tema – o amor –  e se tornou o “poeta da paixão” por intermédio da amada. Ao mesmo tempo em que é alçada a objeto do amor mais solene, também é puro mistério, o outro em sua plenitude, como luz e treva. Fugidia, “como a onda sozinha correndo distante das praias”.

 

Uma das produções musicais mais conhecidas e aclamadas de Vinicius de Moraes foi produto também de uma parceria: Os afro-sambas, álbum lançado em 1966, ao lado do violonista Baden Powell.
Capa do álbum Os afrosambas. Acervo: Projeto República/UFMG

O poeta ama, mas não conhece. Ou melhor: só ama porque sabe que não conhece. Daí a sempre presente questão: “mas quem é essa misteriosa?” cujo desejo desesperado de conhecer é expresso no insistente “é preciso” do poema Receita de mulher  e a inutilidade desse esforço ressoa no intrigante “sei lá” do poema O astronauta . Recorrente topos na escrita de Vinicius de Moraes cabe a ela ”seu pesar ou seu contentamento”. A forma encarnada de sua utopia do amor total.  Pois,

tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada – para viver um grande amor.

 

 

 A brusca poesia da mulher amada
Vinícius de Moraes

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente…
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor — oh, a mulher amada é como a fonte!

A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados…

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias Pousada no fundo estará a estrela, e mais além. (…) 

 

(…) Mulher, ai, ai, mulher 
Sempre mulher 
Dê no que der 
Você me abraça, me beija, me xinga 
Me bota mandinga 
Depois faz a briga 
Só pra ver quebrar 
Mulher, seja leal 
Você bota muita banca 
Infelizmente eu não sou jornal.  (…)

 

 Poema para todas as mulheres
Vinícius de Moraes

(…) No teu branco seio eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas.
Ai! teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pelos…
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha quero o colo de Nossa Senhora! (…) 

 

(…) Assim como o poeta só é grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor não é viver
Não há você sem mim, eu não existo sem você (…)

 

 A mulher que passa
Vinícius de Moraes

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que boia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça. (…) 

 

(…) Quando me pergunto 
Se você existe mesmo, amor 
Entro logo em órbita 
No espaço de mim mesmo, amor 

Será que por acaso 
A flor sabe que é flor 
E a estrela Vênus 
Sabe ao menos 
Porque brilha mais bonita, amor. (…)

 

 Receita de mulher
Vinícius de Moraes

As muito feias que me perdoem 
Mas beleza é fundamental. É preciso 
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 
Em tudo isso (ou então 
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). 
Não há meio-termo possível. É preciso 
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso 
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 
Alguma coisa além da carne: que se os toque 
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então 
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca 
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas 
No enlaçar de uma cintura semovente. 
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 
É como um rio sem pontes. Indispensável 
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios 
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal 
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas 
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. 
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) 
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face 
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes 
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e 
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos 
Ao abri-los ela não mais estará presente 
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida. Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 
O impossível perfume; e destile sempre 
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.  (…)

 

 Soneto de luz e treva
Vinícius de Moraes

“Itapuã
Para a minha Gesse, e para que 
ilumine sempre a minha noite” 

Ela tem uma graça de pantera 
No andar bem-comportado de menina. 
No molejo em que vem sempre se espera 
Que de repente ela lhe salte em cima. 

Mas súbito renega a bela e a fera 
Prende o cabelo, vai para a cozinha 
E de um ovo estrelado na panela 
Ela com clara e gema faz o dia. 

Ela é de capricórnio, eu sou de libra 
Eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã 
A mim me enerva o ardor com que ela vibra 

E que a motiva desde de manhã. 
– Como é que pode, digo-me com espanto 
A luz e a treva se quererem tanto (…)

7. Atividades propostas

Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.

 

Poesia & Prosa – Atividades – Vinicius de Moraes