1. Perfil biográfico

Guimarães Rosa (1908-1967)

Os colegas da Faculdade de Medicina da UFMG o conheciam como João Rosa. Em 1925, aos dezessete e poucos anos, João Guimarães Rosa morava em Belo Horizonte. Veio de Cordisburgo, ainda garoto, para estudar – uma cidadezinha no meio de Minas Gerais, ponto de parada de tropas para o sertão mineiro. Não parecia prestar atenção nem na política mineira, nem nos rapazes da Rua da Bahia, o grupo de escritores modernista que reunia entre outros, Pedro Nava, Emílio Moura, Achilles Vivacqua, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos. Não gastou conversa no Café e Confeitaria Estrela, não colaborou nos jornais estudantis – A Caveira e O Esqueleto –, não se deu ao luxo de ser farrista. Mas ele gostava de jogar futebol num terreno atrás da faculdade onde havia sido construído um campo – e jogava na posição de center-half, igualzinho a Zé Centeralfe, personagem do conto Fatalidade, publicado em Primeiras histórias.

 

Alunos e professores da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, entre 1925 e 1930. No destaque é assinalado o futuro médico João Guimarães Rosa.
Coleção particular Ismael de Faria, Iracema de Faria Barreto e Roberto Faria.

Já encontrava tempo para escrever contos: em 1929 publicou na revista O Cruzeiro, editada no Rio de Janeiro, O mistério de Highmore Hall. Em 1930, emplacou, na mesma revista, Caçadores de camurça e Chronos Kai Anagke, esse último acompanhado de uma epígrafe convencidíssima: “a mais extraordinária história de xadrez já explicada aos adeptos e não adeptos do tabuleiro”.

Dezesseis anos depois de formado Guimarães Rosa publicou Sagarana, seu primeiro livro. Em 1956, aparecem Corpo de baile e seu único romance, Grande sertão: Veredas. Em 1962, sai Primeiras estórias e, em 1967, Tutaméia, o mesmo ano de sua morte. Em 1969, o editor José Olympio publica dois livros póstumos: Estas estórias e Ave palavra.

A primeira coisa que chama a atenção em seus livros é a linguagem. A fala dos personagens de Guimarães Rosa não existe: é uma fala inventada por ele, ninguém em Minas Gerais fala desse jeito. Ele misturou uma fala letrada e muito erudita com outra de raiz sertaneja e temperou isso com uma série de transgressões e de inovações lingüísticas e filológicas.

Seus livros trazem histórias de amor e de guerra, de Diadorim e Paredão. E falam quase sempre do Sertão, que nunca é visto somente como um ponto extremo ou um espaço vazio. Mas, o pano de fundo de sua obra são os excluídos da República brasileira. Pela via da linguagem, a famosa linguagem inventada por ele, os excluídos de nossa República têm oportunidade de usar a palavra e irromper na historia. Sua obra mergulhou no fundo do Brasil para escutar o lamento de seu povo.

 

 

Obras completas:

Romance
  • Grande sertão: veredas (1956)
Novelas e Contos
  • Sagarana (1946)
  • Corpo de baile (1956)
  • Primeiras estórias (1962)
  • Campo geral (1964)
  • Manuelzão e Miguilim (1964)
  • No Urubuquaquá, no Pinhém (1965)
  • Noites do sertão (1965)
  • Tutaméia (Terceiras estórias) (1967)
  • Estas estórias (1969)
  • Ave, palavra (1970)
Poesia
  • Magma (1936)

 

Para saber mais:

BOLLE, Willi. grandesertão.br: O romance de formação do Brasil. São Paulo: Ed. 34 / Duas Cidades, 2004.

STARLING, Heloisa. Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Revan; IUPERJ, 1999.

2. Rosa e a canção popular brasileira

A obra de Guimarães Rosa é onipresente no interior da nossa imaginação cultural. Ela repuxa e invade as diversas linguagens estéticas que formam o campo da cultura brasileira e se articula com todas elas. Mas nada se compara ao sucesso da relação entre a canção popular e a obra literária de Guimarães Rosa. A relação entre a canção popular e a obra de Rosa é, provavelmente, a evidência mais forte da equivalência entre as duas classes de linguagem poética através das quais o Brasil pensa e inventa a si mesmo: a escrita e a cantada. Também serve para escancarar o lugar onde se constitui a fronteira entre os diferentes territórios que formam a tradição letrada, tradição escrita, tradição do livro e tradição oral da poesia cantada no país.

Guimarães Rosa estava convencido de que “há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original”. E insistia: “O som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer”. O jagunço Riobaldo Tatarana, personagem principal de Grande sertão: veredas, costumava dizer que nem tudo no sertão pode ser nomeado, mas

tudo, nesta vida, é muito cantável.

São sons e ruídos que a natureza oferece, a rotina do trabalho repete, os afetos confirmam, a imaginação do homem opõe e mistura.

 

Página da primeira edição do livro Sagarana, autografada por João Guimarães Rosa com dedicatória ao escritor Cyro dos Anjos. 1946.
Acervo dos Escritores Mineiros da Faculdade de Letras. (FALE/UFMG)

Durante entrevista realizada, em 1993, pelo jornalista Zuenir Ventura, para o livro 3 Antônios 1 Jobim, o compositor Tom Jobim expôs a afinidade explícita entre o projeto literário de Guimarães Rosa e seu próprio trabalho:

Guimarães Rosa está dentro da minha obra… Tentava ler Grande sertão… e não consegui, porque era denso, pesado. Depois, aquilo virou uma sopa no mel. Aquilo virou a minha casa!

Mas não virou a casa só de Tom Jobim. É rico e muito variado o cancioneiro popular construído em torno da obra de Guimarães Rosa. Incluí quase todos os gêneros e reúne um sem número de compositores e interpretes. Como por exemplo: Travessia de Milton Nascimento e Fernando Brant; Rosamundo, de João Bosco; Assentamento, de Chico Buarque; Casinha feliz, de Gilberto Gil; A terceira margem do rio, de Caetano Veloso e Milton Nascimento. E, é claro, existe Matita Perê, de Tom Jobim e Paulo Cesar Pinheiro. Um exemplo único no cancioneiro popular da arte de compor uma canção que é capaz de levar ao extremo as possibilidades de fundir-se com o modelo literário que lhe serviu de fonte.

Matita Perê foi gravada por Tom Jobim, em 1973.Trata-se de uma suíte mateira, como Tom tratou de definir ao seu parceiro. Nela é notável a realização, na letra, da construção da trama – obra de Pinheiro que foi capaz de deslocar para dentro da canção e em sua própria língua, não o sentido original proposto por Guimarães Rosa, mas, ao contrário, o modo particular com que ele e Tom leram Rosa. A canção faz uma evocação direta ao romance Chapadão do bugre, de Mário Palmério, revelada nos versos:

Lá vinha Matias, cujo nome é Pedro, aliás, Horácio, vulgo Simão.

Também constrói uma vistosa seqüência de estrofes que integram à canção o poema Um chamado João, composto por Carlos Drummond de Andrade, em 1967, em homenagem a João Guimarães Rosa. Contudo, a grande fusão da música e dos versos de Matita Perê com a fonte literária que lhe serviu de inspiração direta só se realiza por completo no seu intenso diálogo com o conto Duelo, de Guimarães Rosa.

O conto integra o livro Sagarana, obra de estreia do autor publicada em 1946. A história é bem conhecida: dois homens se perseguem em busca de uma reparação a qualquer transe pela ofensa que um deles cometeu contra o outro. Desde então, o destino de ambos está jogado: um, responde pelo que não escolheu; o outro, pelo dano que trouxe à imagem pública de quem procura reparar sua honra desafiando-o às armas. Tom Jobim e Paulo Cesar Pinheiro recriaram aquilo que é absolutamente essencial no argumento literário do conto de Guimarães Rosa. Em Matita Perê, a perseguição consome os antagonistas na síntese perversa entre medo, morte e violência.

A canção de Tom Jobim Paulo César Pinheiro é única. Mas, em 1969, Pinheiro já havia composto com João de Aquino Sagarana, uma espécie de batuque mineiro que tem como subtítulo: Saudação a João Guimarães Rosa – e que recebeu uma interpretação deslumbrante na voz de Clara Nunes. Sagarana é, por assim dizer, a irmã gêmea de Matita Perê. Nela, Pinheiro e Aquino levaram às últimas consequências a sonoridade do projeto literário de Rosa: a afirmação de uma língua poética ainda não saturada, cujo desenvolvimento ainda não se deteve e que ainda é uma língua “além do bem e do mal”, para usar os termos do próprio Guimarães Rosa.

 

 

 

 O burrinho pedrês – Sagarana
João Guimarães Rosa

(…) as ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão(…)

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando… Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito… Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando…(…)

 

 

(…) No clarão das águas
No deserto negro
A perder mais nada
Corajoso medo
Lá quero ver você
Por sete caminhos
De setenta sortes
Setecentas vidas
E sete mil mortes
Esse um, João, João
E deu dia claro
E deu noite escura
E deu meia-noite
No coração (…)

 

 Sorôco, sua mãe, sua filha – Primeiras estórias.
João Guimarães Rosa

(…) a gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente… E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Soroco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.(…)

 

 Viver no oco
De uma pedra
No Vesúvio
Quero estar em Cordisburgo
Quando aquele trem passar
Subindo acima
Lá no céu que me ilumina
Vou cortando com Machado
Lenha pra rimar

Ah! O verso quando alastra
É música que o vento
Zune no lugar
Ah! O moço até disfarça
Mas não perde a graça
De Rosa no ar

No Urubuquaquá
Onde é que fica isso
Fica no Pinhém (…)

 

 Um Chamado João
Carlos Drummond de Andrade

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?

E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

 

(…) Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora. (…)

3. Sertão

No Brasil, o termo sertão carrega uma forte dose de ambiguidade. Durante o século XVIII serviu para designar as terras do interior, o lugar de desvio das povoações, domínio do desconhecido. A partir de então, sertão é um termo que articula pelo menos dois significados principais: de um lado, indica a formação de um espaço interno, a perspectiva do interior; de outro lado, aponta para a configuração de uma realidade política: o deserto, a ausência de povoamento, a inexistência da ordem.

 

Mapa indicando um dos percursos do personagem Riobaldo Tatarana na travessia dos gerais em Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa.
In. TOLEDO, Marcelo de Almeida (ORG.) As trilhas de amor e guerra de Riobaldo Tatarana. São Paulo: Masssao Ohno – M. Lydia Pires Editores, 1982.

A narrativa de Grande sertão: veredas introduz uma novidade. A beleza do sertão de Guimarães Rosa, tão diferente do sertão áspero, com suas paisagens secas descritas por Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto. Guimarães Rosa acrescentou ainda sua própria percepção sobre a existência de uma gente condenada a viver uma absurda condição de desterro, vida onde a esperança é provisória e onde não cabe mais sequer sentir saudade do sonho de possuir uma terra e vivê-la em comum. Terra de párias e de desterrados, o sertão de Guimarães Rosa, por maior que seja, é o que não se vê: o fundo arcaico projetado sobre uma sociedade primitiva que vive longe do espaço urbano e o que é aparentemente seu avesso: uma cidade brasileira qualquer e todas as outras cidades do país, a cidade que se deixou perder de seus princípios civis e a que já é apenas degradação de seus lugares públicos, a cidade concebida para expressar a modernização e a periferia miserável que fixou seu perfil. Ou, no argumento do próprio Guimarães Rosa:

Sertão é o sem-lugar que dobra sempre mais para adiante, territórios.

De fato, sertão é dobra: nem um nem outro, mas o que se dá entre; não vai a lugar nenhum, refaz-se sempre no meio do caminho. Não por acaso, logo no início da narrativa de Grande sertão: veredas, o jagunço Riobaldo Tatarana, afirma convicto: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade”. Um mundo no qual todas as coisas ainda estão por fazer e seu avesso, a pequena história de uma República em que uma grande oportunidade se perdeu irremediavelmente.

 

 

 

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Aí mês de maio, falei com a estrela-d’alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. (…) um céu azul no repintado com as nuvens que não se removem. (…) quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos ventos maiorzinhos. A frente da fazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma restinga de cerrado, de donde descem borboletas brancas, que passam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das horas. E a fogo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim, até hoje, o canto da fogo-apagou tem um cheiro de folhas de assa-peixe. (…)

 

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos – conforme o Reinaldo disse – que é o Passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa. (…) Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa; eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles. (…)

 

Minha gente
Eu vou-me embora
Mineiro tá me chamando
Mineiro tem esse jeito
Chama a gente e vai andando
O galo cantou na serra
Da meia-noite pro dia
O touro berrou na vargem
No meio da vacaria
Coração se amanheceu
De saudade que doía. (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Claráguas, fontes, sombreado e sol. Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes – mais antes do Campo Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de entre quase encostar de duas folhas, saiam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, dessa luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que titipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de finas asas; pássaro esperto. Ia dechover mais em mais. Tardinha que enche as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-dobrejo, o suiriri, o sabiá-ponga, o grunhatá-do coqueiro… Eu estava todo o tempo quase com Diadorim. (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos. (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. (…)

 

(…) Quero onçar aqui no meu terreiro
Vou onçar sertão e mundo inteiro
Já está na hora da onça beber o seu
Vou dançar com a lua
Lá no céu dama de fogo
Maria Maria
Onça de verdade, quero ter a luz, ouvir o som caçador (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e a mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta.(…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Sertão é o sozinho. (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Sertão – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.(…)

4. Do amor e suas formas

ou “A flor do amor tem muitos nomes”

Falar do amor em Guimarães Rosa cria uma relação inevitável. Dela não podemos escapar. É que, em Rosa, amor e palavra, estão estreitamente ligados – existe uma cumplicidade entre ambos. Isso quer dizer: existe estreita vinculação entre as diversas formas de amor e as respectivas linguagens que falam do amor e com que o amor se fala. Em Grande sertão: veredas, o jagunço Riobaldo Tatarana conhece três formas diferentes de amor: Diadorim, Otacília, Nhorinhá.

 

Anotações feitas à mão por Guimarães Rosa no projeto de escrita do romance A fazedora de velas. A obra foi interrompida pelo autor. Segundo ele: “A personagem, ainda enferma, falava de sua doença grave. Inconjurável, quase cósmica, ia-se essa tristeza passando pra mim, me permeava. Tirei-me de sério medo. Larguei essa ficção de lado”.
Acervo: Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP)

Metade princesa e santa – “santinha no alto da alpendrada” –, Otacília é a imagem perfeita, o retrato ideal, donzela e esposa, o amor dentro dos costumes, do conhecido, amor ilusoriamente estável e que será imprescindível ao apaziguamento de Riobaldo. Cabelos compridos, casta, acanhada, sinhazinha da Casa Grande de quem é exigido dissimular o desejo, o amor de Otacília (etimologicamente “aquela que escuta”) levará Riobaldo a por termo às andanças de guerrear e pelejar, estabilizar-se como fazendeiro, reintegrar-se à vida convencional, purgar o pacto e recordar Diadorim.

Nhorinhá é outra conversa. Prostituta sedutora e sutil, filha de Ana Duzuza, a cigana que conhece “por detrás o pano do destino”, Nhorinhá traz um fio de sorriso nos lábios e combina no amor, afeto e cuidados, sexualidade, desejo e prazer – além do corpo, Nhorinhá oferece a Riobaldo um presente: a presa de jacaré que protege contra mordida de cobra e pede a ele que beijasse a estampa de santa “meio milagrosa”. O amor de “militriz” mescla afeto e encontro, é sensual e natural, e dá ao corpo novos sentidos: olhar, cheiro e gosto. “Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca”.

Sem perder os atributos que lhes são próprios, Otacília e Nhorinhá vão, pouco a pouco se interpenetrando na memória de Riobaldo – uma produz a lembrança da outra. Diz Riobaldo,

Coração cresce de todo lado… coração mistura amores

Nos Gerais das Minas, liroliro é flor do amor. Um tipo de lírio branco, de caule comprido e perfume acentuado e doce. A mesma flor evoca as duas mulheres e Diadorim, tão diferentes entre si. Quando perguntei o nome da flor, diz Riobaldo, “Otacília me atendeu: Casa-comigo.” Mas Nhorinhá iria nomear a mesma flor por outro nome: “Dorme-comigo”.

O liroliro reúne todos os amores – “Ah, a flor do amor tem muito nomes”, explica Riobaldo.

 

 

 

 Grande sertão: Veredas (Otacília)
João Guimarães Rosa

(…) Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe. Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais, Buritis Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa Catarina. Que quando só vislumbrei graça de carinha e riso e boca, e os compridos cabelos, num enquadro de janela, por o mal aceso de uma lamparina. (…) 

 

 Grande sertão: Veredas (Otacília)
João Guimarães Rosa

(…) Minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. Fui eu que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado.(…)

 

(…) É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor Sagarana
Uma coisa é o alto bom-buriti
Outra coisa é buritirana
Quem quiser que cante outra
Mas à-moda dos Gerais
Buriti, Rei das Veredas
Guimarães: Buritizais! (…)

 

 Grande sertão: Veredas (Otacília)
João Guimarães Rosa

(…) Mas, na beira da alpendrada, tinha um canteirozinho de jardim, com escolha de poucas flores. Das que sobressaíam, era uma flor branca – que fosse caeté, pensei, e parecia um lírio – alteada e muito perfumosa. E essa flor é figurada, o senhor sabe? Morada em que tem moças, plantam dela em porta da casa-de-fazenda. De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome da flor. ‘– Casa-comigo…’– Otacília baixinho me atendeu. E no dizer, tirou de mim os olhos.(…)

 

 Grande sertão: Veredas (Otacília)
João Guimarães Rosa

(…) E o nome da flor era o dito, tal, se chamava – mas para os namorados respondido somente. Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: ‘– Dorme-comigo…’ Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de Ana Dazuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flor do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de menino pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar. (…)

 

 Grande sertão: Veredas (Otacília)
João Guimarães Rosa

(…) Porque, no meio do momento, me virei para onde lá estava Diadorim, e eu urgido quase aflito. Chamei Diadorim – e era um chamado com remorso – e ele veio, se chegou. Aí, por alguma coisa dizer, eu disse: que estávamos falando daquela flor. Não estávamos? E Diadorim reparou e perguntou também que flor era essa, qual sendo? – perguntou inocente. – ‘Ela se chama é liroliro…’ – Otacília respondeu. (…)

 

(…) Não se espante assim, meu moço
Com a noite do meu sertão
Tem mais perigo que a poesia
Do que o jogo da razão
Atormenta
Gera estórias
É tão vida quanto o sol
São cavalos beirando o rio
E o corpo da menina
Ofegante ali do lado
Ansiosa pelo tato
Do carinho arrebatado
Do calor da tua mão (…)

 

 Grande sertão: Veredas (Nhorinhá)
João Guimarães Rosa

(…) Na Aroeirinha fizemos paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. – ‘Ô moço da barba feita…’ – ela falou. Na frente da boca, ela quando ria tinha todos os dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei  o animal num pau da cerca. (…)

 

 Grande sertão: Veredas (Nhorinhá)
João Guimarães Rosa

(…) De repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros que tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira d’água. Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pelo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo… Nhorinhá. Depois ela me deu de presente uma presa de jacaré, para trespassar no chapéu, com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi. (…)

 

(…) Casa de João de Rosa
Rosa de João
João que levantou a casa
No boqueirão
João que fez aquela casa
Rosa fez questão
A casa de botão de Rosa
Que é de João (…) 

 

 Grande sertão: Veredas (Nhorinhá)
João Guimarães Rosa

(…) Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Dazuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. (…)

 

(…) Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai. (…) 

 

 Grande sertão: Veredas (Nhorinhá)
João Guimarães Rosa

(…) Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo. (…)

 

 Grande sertão: Veredas (Nhorinhá)
João Guimarães Rosa

(…) Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo o tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. (…)

5. O Pacto

Diadorim

Diadorim é um nome equívoco. Significa “através de”, “passagem”, “travessia”. Mistura de Diabo e adorável dia em mim. Diadorim é ambíguo, estranho, movediço, belo e terrível, delicado e feroz, capaz de provocar encanto e repulsa. Cabe lembrar que Diadorim tem três nomes: o nome do segredo, Diadorim; o nome do privado, Maria Deodorina; o nome público, Reinaldo. É uma figura de dúvida, uma figura que no entrecho do romance aguça a sensibilidade do leitor para perceber todo o tipo de disfarces, para todo tipo de discursos dissimulados. Por exemplo: perceber o que há de unilateral e redutor no discurso de Riobaldo quando valoriza o guerreiro como característico do masculino; ou perceber quando o próprio Riobaldo descobre que a sensibilidade não é um predicado feminino – ou é? O leitor resolve. Afinal, foi Diadorim quem ensinou a Riobaldo a apreciar as belezas sem dono, a olhar, com olhos de ver, a poesia do Sertão. E foi Diadorim quem conduziu Riobaldo a enxergar algo que é da ordem do tabu: “de que jeito eu podia amar um homem, meu, de natureza igual, macho em suas roupas e em suas armas?”, perguntava Riobaldo, desesperado. E acrescentava perplexo: “ele tinha culpa? Eu tinha culpa?”.

 

Em 1952, Guimarães Rosa acompanhou uma comitiva de boiadeiros durante dez dias pelo interior de Minas Gerais. Os registros feitos durante a viagem foram fundamentais para a sua literatura.
Acervo: Diários Associados. Autor: Eugênio Silva.

 

 

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos – vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa… Reforço o dizer: que era beleza e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança. Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim? (…)

 

(…) Solto a voz nas estradas,
já não quero parar.
Meu caminho é de pedra,
como posso sonhar?
Sonho feito de brisa
vento vem terminar (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. (…) Então o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá? Pode vir de um-que-não-existe? (…) Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta. (…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) Diadorim – Maria Diadorina da Fé Betancourt Marins – aquela que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais, para muito amar, sem gozo de amor.(…)

 

 Grande sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

(…) O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? (…)

 

6. Sugestão de atividades

Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.

 

Poesia & Prosa – Atividades – Guimarães Rosa