1. Perfil biográfico

Padre Antônio Vieira (1608-1697)

Certa vez, o poeta Fernando Pessoa definiu Padre Antônio Vieira como “o imperador da língua portuguesa”. Acertou na mosca. Jesuíta, conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptor de príncipes, diplomata em cortes europeias, defensor dos índios e dos cristãos-novos, Vieira levou a prosa em língua portuguesa a um de seus apogeus inesperados. Passagens bíblicas, fábulas, anedotas, provérbios, episódios da vida de santos, tudo lhe serve, de tudo ele se aproveita para dar alma a seus magníficos sermões que são proferidos, quase sempre, com a intenção de colocar a plateia face a face com os eventos de sua época. Quando elaborava os sermões, Vieira escrevia apenas rascunhos, como em um roteiro. O valor das palavras era sublinhado com o timbre da voz, com o movimento dos gestos, com as modulações de ênfase, recursos decisivos para estabelecer uma comunicação imediata e intensa com a audiência na intenção de comovê-la – e convertê-la.

 

Orador e escritor, Padre Vieira também atuou como diplomata, representando a Coroa Portuguesa em negociações com a França e os Países Baixos. Seu legado como escritor compreende mais de 150 sermões, mais de 700 cartas, relatórios, pareceres e outros documentos.
Padre Vieira. Acervo Biblioteca Nacional.

Seus olhos negros e vivos, cercados por fundas olheiras – Vieira adorava ler e escrever pelas madrugadas, à luz de velas –, eram olhos postos no futuro. O púlpito, sua trincheira de combate político. Fluente em tupi ainda na juventude e testemunha da invasão holandesa da Bahia, onde pregou contundente e vibrante, a favor da resistência dos colonos, Padre Vieira foi missionário entre as tribos indígenas do Maranhão e do Pará e um incansável adversário da escravização dos índios. Enfrentou os colonos escravagistas com dureza, pregou em São Luís e em Belém, com voz de trombeta e tom de ameaça, sem nenhuma tolerância; em troca, recebeu dos índios o título de Paiaçú – Pai Grande.

A nacionalidade de Padre Antônio Vieira costuma ser reivindicada por Portugal e pelo Brasil com a mesma intensidade patriótica. Ele nasceu em Lisboa – sobre isso, não há o que fazer. Mas escolheu defender o Brasil e sua gente. Em seus Sermões, Padre Vieira, indignado e compassivo, congregou, no mesmo elenco, os injustiçados e os oprimidos da colônia. Eticamente impecável, ele também escolheu denunciar os desfrutadores do privilégio, aqueles funcionários públicos vorazes cuja prática política corrompia por dentro o Brasil, devorando nossas riquezas e deixando, em sua passagem, um rastro de ruínas. Os sermões de Vieira pretendiam debater os eventos de sua época; mas, verdade seja dita, parecem espiar nosso presente.

Obras completas

  • Sermões (1679-1697)
  • Cartas do Brasil (1735-1746)
  • Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo (1659)
  • História do futuro (1718)
  • Chave dos profetas (Sem data).

 

Para saber mais

BOSI, Alfredo (org). Essencial Padre Antônio Vieira. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

 

2. Imperador da língua portuguesa

Durante o século XVII, a América portuguesa era povoada por capitães-donatários e pajés indígenas, mulheres africanas escravizadas e homens pobres livres, senhores de engenho e governadores-gerais, colonos e feitores, cristãos-novos e escravos de eito. Todos esses grupos sociais tinham algo em comum: a pouca ou nenhuma familiaridade com a palavra escrita, com o português, ou com o mundo letrado do qual fazia parte o Padre Antônio Vieira. Esse contexto tornava ainda mais difícil as missões dos clérigos jesuítas de converter os indígenas ao catolicismo e de esclarecer os colonos portugueses na América acerca dos princípios da doutrina católica, base do empreendimento colonial.

 

Os Sermões de Vieira circularam por todo o Império português. Mas Vieira também meteu-se em política, na Corte, em Lisboa. Lá, foi o jesuíta do rei d. João IV. O primeiro volume de seus sermões, publicado em 1679, apresenta Vieira como o “pregador de Sua Alteza” e é dedicado ao soberano português.
Sermões do Padre Antônio Vieira – Primeira Parte. Data: 1679. Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal.

Desde a primeira geração de jesuítas que para cá vieram com a instalação do Governo-geral da Bahia em 1548, muitos esforços foram feitos para superar o obstáculo da língua na comunicação com os nativos. Em 1595, o Padre José de Anchieta escreveu a primeira gramática conhecida da língua tupi. Seu nome era Arte de gramática da língua mais falada na costa do Brasil. Mas as dificuldades permaneciam e, durante o século XVII, Padre Antônio Vieira usou da palavra falada e do gênero do sermão para se comunicar com os habitantes da América portuguesa. Nesta empreitada, foi muito bem-sucedido.

O sermão é um discurso religioso proferido por um clérigo, geralmente a partir de um púlpito, e ouvido pelos fiéis

Os sermões se tornaram a principal forma de circulação de informações na Colônia. E Vieira era um mestre na arte da oratória barroca. Seus sermões eram verdadeiras performances: dizem que combinavam um timbre de voz imponente com uma modulação perfeita e gestos que prendiam a atenção de todos. Padre Antônio Vieira sempre recorria ao repertório de ensinamentos da Bíblia, em especial aos livros dos apóstolos. Seus sermões guardavam uma lição moral e virtuosa, já que ele se preocupava em formar o bom cristão (fosse ele índio ou colono).

No conjunto, foram cerca de 207 sermões escritos e pregados ao longo de sua vida. O primeiro sermão público de Padre Antônio Vieira versou sobre o tema da conquista de Salvador pelos holandeses e seu impacto no cotidiano da cidade.  Ele foi pregado na igreja de Nossa Conceição Senhora da Praia, em Salvador, no dia 6 de março de 1633. Aos sermões, somam-se cartas, textos proféticos e relatório políticos encomendados pelo rei d. João IV.

Vieira era um exímio orador barroco. As antíteses, comparações, metáforas e trocadilhos presentes em seus sermões conferiam exuberância e dramaticidade próprias do barroquismo português aos seus discursos. Para ele, o momento da pregação cristã era um verdadeiro espetáculo. Um sermão deveria deleitar (delectare), ensinar (docere) e influenciar os comportamentos (movere) dos fiéis. Tudo para expressar o dogmatismo cristão defendido pelo padre. A prosa impecável de Padre Vieira se tornou uma referência da língua portuguesa, como aliás, diria Fernando Pessoa, alguns séculos depois – e assim permanece até hoje.

 

 

 Sermão da terceira dominga do Advento
Padre Antônio Vieira

(…) Muito tempo há que tenho dous escândalos contra a nossa gramática portuguesa nos vocábulos do nobiliário. A fidalguia chamam-lhe qualidade, e chamam-lhe sangue. A qualidade é um dos dez predicamentos a que reduziram todas as cousas os filósofos. O sangue é um dos quatro humores de que se compõe o temperamento do corpo humano. Digo, pois, que a chamada fidalguia não é somente qualidade, nem somente sangue; mas é de todos os dez predicamentos e de todos os quatro humores. Há fidalguia que é sangue, e por isso há tantos sanguinolentos; há fidalguia que é melancolia, e por isso há tantos descontentes; há fidalguia que é cólera, e por isso há tantos mal sofridos e insofríveis; e há fidalguia que é fleuma, e por isso há tantos que prestam para tão pouco. De maneira que os que adoecem de fidalguia não só lhes peca a enfermidade no sangue, senão em todos os quatro humores. O mesmo se passa nos dez predicamentos. Há fidalguia que é substância, porque alguns não tem mais substância que a sua fidalguia; há fidalguia que é quantidade: são fidalgos porque tem muito de seu; há fidalguia que é qualidade, porque muitos, não se pode negar, são muitos qualificados; há fidalguia que é relação: são fidalgos por certos respeitos; há fidalguia que é paixão: são apaixonados de fidalguia; há fidalguia que é ubi: fidalgos, porque ocupam grandes lugares; há fidalguia que é sítio, e desta casta é a dos títulos, que estão assentados, e os outros em pé; há fidalguia que é hábito: são fidalgos porque andam mais bem vestidos; há fidalguia que é duração: fidalgos por antiguidade. E qual destas é a verdadeira fidalguia? Nenhuma. A verdadeira fidalguia é ação. Ao predicamento da ação é que pertence a verdadeira fidalguia. Nam genus, et proavos, et quae non fe cimus ipsi, vix ea nostra voco, disse o grande fundador de Lisboa [Nota de Vieira: Ulysses apud Ovidium, Metamorf. Trad.: “Pois com muito custo chamo nossos a estirpe, os antepassados e as coisas que nós próprios fizemos”.]: As ações generosas, e não os pais ilustres, são as que fazem fidalgos. Cada um é suas ações, e não é mais, nem menos, como o Batista: Ego vox clamantis in deserto. (…)

 

(…) Meu nome é Orson Antônio Vieira conselheiro de Pixote
SuperOutro
Quero ser velho
De novo eterno
Quero ser novo, de novo
Quero ser Ganga bruta e Clara gema
Eu sou o samba
Viva o cinema
Viva o Cinema Novo

 

 Antônio Vieira (Mensagem – Terceira Parte)
Fernando Pessoa

 O céu estrela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz e etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doiro as margens do Tejo. (…)

3. O paiaçu dos indígenas

Padre Antônio Vieira foi o Paiaçu – pai grande dos nativos do continente americano. Seja em Salvador, na sede do Governo-geral da Bahia, ou na capitania do Maranhão, onde foi Superior das aldeias jesuíticas do Norte entre 1653 e 1661, o jesuíta foi um árduo defensor da catequese como uma estratégia da Igreja Católica na América portuguesa  e como a melhor relação entre a Coroa  e as sociedades indígenas. Estratégia da Igreja porque, no contexto da expansão do protestantismo na Europa, importava conquistar fiéis ao catolicismo no Novo Mundo. Melhor relação com os nativo-americanos na medida em que Vieira se opunha e combatia a escravização dos indígenas, instituição defendida pelos colonos portugueses na América.

 

Padre Antônio Vieira defendeu a liberdade dos indígenas da América portuguesa, que sofriam com as recorrentes ameaças de escravização por parte dos colonos portugueses no século XVII. Por isso, foi chamado de Paiaçu pelos índios tupis. Mas essa liberdade dos nativos defendida por ele tinha contornos muito bem delimitados: ela deveria ser tutelada pelos jesuítas, que seriam os responsáveis pela catequização e salvação das almas do chamado gentio.
Padre Antônio Vieira. Autor: C. Legrand. Data: 1839. Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal

Tudo isso levou parte dos índios tupis que viviam no que hoje é a região Norte do Brasil a protegerem Vieira das flechadas envenenadas dos nativos resistentes à ação dos jesuítas ou das armas de fogo dos colonos inimigos da ordem religiosa. Quando o padre viajou em canoas pelos rios Tapajós, Tocantins e Amazonas imbuído de forte espírito missionário foi nos tupis que ele encontrou apoio e abrigo. Por isso, Antônio Vieira recebeu a alcunha de Paiaçu dos indígenas.

Vieira dedicou-se à construção da missionação dos índios do Norte na capitania do Maranhão. É bem verdade que não atuava como missionário há mais de trinta anos e sua experiência de campo estava limitada aos tempos de juventude, na Bahia. Mas sua capacidade de liderança compensava qualquer coisa. Foi o estrategista da missionação; e, é claro, seus sermões animavam os padres jesuítas e sua figura inspirava respeito entre os religiosos.

Vieira acreditava na existência da alma indígena e na possibilidade de sua conversão ao catolicismo. Por isso, criticava em seus sermões a ganância dos colonos luso-brasileiros interessados em escravizar os nativos. As dificuldades de se conseguir mão-de-obra africana escravizada para a produção do açúcar nos engenhos nas capitanias era o argumento utilizado pelos colonos para justificar a escravização do gentio e isso Vieira não aceitou. Sua postura diante da escravidão indígena, assim como a de outros jesuítas e da Igreja Católica nesse período, levou até mesmo à expulsão da Companhia de Jesus de várias capitanias ao longo dos séculos XVI e XVII, como no caso de São Vicente e Espírito Santo, e à Revolta de Beckman, ocorrida no Maranhão em 1684. Mas Vieira, assim como os jesuítas em geral, empenhou-se em destruir as crenças e as práticas religiosas indígenas para substituí-las pelo catolicismo. O jesuitismo missionário de Vieira era radical: defendia os índios diante dos colonos, mas não reconhecia o mundo tupi, seus costumes e religiões, em sua alteridade com o mundo cristão. Restava a conversão forçada.

Se o Padre Antônio Viera era o Paiaçu dos indígenas, ele pouco fez diante da escravização dos negros trazidos à força do continente africano. Para ele, a escravidão dos africanos era legítima como instituição. Vieira conhecia muito bem toda a argumentação favorável à escravidão daqueles que chamava de “etíopes”. Em sermão sobre a escravidão pregado no ano de 1633 e dirigido aos escravos, o jesuíta defende que eles deveriam agradecer a Deus por teriam sido retirados de seu continente para serem convertidos ao catolicismo. Só assim, poderiam, como bom devotos de Nossa Senhora do Rosário, ser salvos.

 

 

 Sermão da primeira dominga da quaresma
Padre Antônio Vieira

(…) Pode haver coisa mais moderada? Pode haver coisa mais posta em razão que esta? Quem se não contentar e não satisfizer disto, uma de duas: ou não é cristão, ou não tem entendimento. E se não, apertemos o ponto, e pesemos os bens e os males desta proposta.(…)

O mal é um só, que será haverem alguns particulares de perder alguns índios, que eu vos prometo, que sejam mui poucos. Mas aos que nisto repararem pergunto: Morreram-vos já alguns índios? Fugiram-vos já alguns índios? Muitos. Pois o que faz a morte, por que o não fará a razão? O que faz o sucesso da fortuna, por que o não fará o escrúpulo da consciência? Se vieram as bexigas e vo-los levaram todos, que havíeis de fazer? Havíeis de ter paciência. Pois, não é melhor perdê-los por serviço de Deus que perdê-los por castigo de Deus? Isto não tem resposta.

Vamos aos bens, que são quatro, os mais consideráveis. O primeiro é ficardes com as consciências seguras. Vede que grande bem este. Tirar-se-á este povo do estado de pecado mortal; vivereis como cristãos, confessar-vos-eis como cristãos, morrereis como cristãos, testareis de vossos bens como cristãos; enfim, ireis ao Céu, não ireis ao Inferno, ao menos certamente, que é triste cousa.

O segundo bem é que tirareis de vossas casas esta maldição. Não há maior maldição numa casa, nem numa família, que servir-se com suor e com sangue injusto. Tudo vai para trás; nenhuma cousa se logra; tudo leva o Diabo. O pão que assim se granjeia, é como o que hoje ofereceu o Diabo a Cristo; pão de pedras, que quando se não atravessa na garganta, não se pode digerir. Vede-o nestes que tiram muito pão do Maranhão, vede se o digeriu algum, ou se se lhe logrou algum? Houve quem se lhe atravessou na garganta, que nem confessar-se pôde.

O terceiro bem é, que por este meio haverá muitos resgates, com que se tirarão muitos índios, que doutra maneira não os haverá. Não dizeis vós que este estado não se pode sustentar sem índios? Pois se os sertões se fecharem, se os resgates se proibirem totalmente, mortos estes poucos índios que há, que remédio tendes? Importa logo haver resgates, e só por este meio se poderão conceder.

Quarto, e último bem; que feita uma proposta nesta forma, será digna de ir às mãos de Sua Majestade, e de que Sua Majestade a aprove e a confirme. Quem pede o ilícito e o injusto, merece que lhe neguem o lícito e o justo; e quem requer com consciência, com justiça, e com razão, merece que lha façam. Vós sabeis a proposta que aqui fazíeis? Era uma proposta que nem os vassalos a podiam fazer em consciência, nem os ministros a podiam consultar em consciência, nem o rei a podia conceder em consciência. E ainda que por impossível el-rei tal permitisse, ou dissimulasse, de que nos servia isso, ou que nos importava? Se el-rei permitir que eu jure falso, deixará o juramento de ser pecado? Se el-rei permitir que eu furte, deixará o furto de ser pecado? O mesmo passa nos índios. El-rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição. Se tal proposta fosse ao reino, as pedras da rua se haviam de levantar contra os homens do Maranhão. Mas se a proposta for lícita, se for justa, se for cristã, as mesmas pedras se porão de vossa parte, e quererá Deus que não sejam necessárias pedras nem, pedreiras. Todos assinaremos, todos informaremos, todos ajudaremos, todos requereremos, todos encomendaremos a Deus, que ele é o Autor do bem, e não pode deixar de favorecer intentos tanto de seu serviço. E tenho dito. (…)

 

 Carta ao rei d. João IV de 4 de abril de 1654
Padre Antônio Vieira

Senhor. – Recebi a carta que V. M. Me fez mercê de mandar escrever, e, depois, de a venerar com todo o afeto que devo, achou a minha alma nela toda a consolação que V. M., por sua piedade e grandeza, quis que eu com ela recebesse. Dou infinitas graças a Deus pelo grande zelo da justiça e salvação das almas que tem posto na de V. M., para que, assim como tem sido restaurador da liberdade dos portugueses, o seja também das destes pobres Brasis, que há trinta e oito anos padecem de tão injustos cativeiros e tiranias tão indignas do nome cristão.

Eu lis aos índios, assim do Pará como deste Maranhão, a carta de V. M. traduzida na sua língua, e com ela ficaram mui consolados e animados e se acabaram de desenganar que o não serem até agora remedidas suas opressões era por não chegarem aos ouvidos de V. M. seus clamores; esperam pelos efeitos destas promessas, tendo por certo que lhe não sucederá com elas o que até agora com as demais, pois as veem firmadas pela real mão de V. M.

V.M. me fez mercê dizer que mandou se confirmasse os despachos com tudo o que que de cá apontei; mas temo que aconteça ao Maranhão como nas enfermidades agudas, que entre as receitas e os remédios piores o enfermo de maneira que, quando se vêm aplicar, é necessário que sejam outros mais eficazes. Tudo neste estado tem destruído a demasiada cobiça dos que governam, e ainda depois de tão acabado não acabam de continuar os meios de mais o consumir. O Maranhão e o Pará são uma Rochela de Portugal, e uma conquista por conquistar, e uma terra onde V. M. é nomeado, mas não obedecido. (…)

4. O pregador semeando o Evangelho

A Igreja Católica atravessou a virada do século XV para o XVI em crise. Reformistas como Martinho Lutero e João Calvino romperam com o Papa, fundando novas religiões cristãs. A Igreja perdia fiéis não para os chamados cultos demoníacos, tão combatidos pela Santa Inquisição durante a Idade Média, mas para outras vertentes do cristianismo, críticas ao poder do Papa e à sua suposta infalibilidade. Por todos os lados, parecia que a autoridade dos clérigos católicos sobre os modos de viver e de pensar dos europeus estava sendo colocada em dúvida. A Companhia de Jesus foi criada nesse contexto e seu objetivo maior era barrar a crise da Igreja por meio da conversão ao catolicismo dos nativos dos continentes que, para os europeus, eram novidade. Juntamente à criação do Index de livros proibidos aos cristãos e da recriação da instituição da Inquisição nos tempos modernos, jesuítas como Padre Antônio Vieira, já no século XVII, buscaram atuar como missionários que espalhavam a fé católica pelo mundo.

Os jesuítas chegaram à América portuguesa ainda em 1549 juntamente com Tomé de Souza, o primeiro governador-geral da Bahia. Ali, logo se instalou o bispado da Bahia sob o comando de dom Pero Fernandes Sardinha. No vasto território do Império marítimo português, que comportava uma gama diversa de especificidades locais, talvez os jesuítas fossem um dos poucos elementos presentes em todas as possessões portuguesas do ultramar. Seja entre os índios tupis, no Recôncavo baiano, ou entre os súditos do manicongo, o governante do reino do Congo convertido ao catolicismo, na África ou ainda no Japão, os missionários jesuítas estavam presentes em todas regiões em que, a mando e mercê do rei, um colono ou navegador português havia instalado uma feitoria ou colônia. Padre Antônio Vieira foi um desses jesuítas. E dos mais importantes, pois não apenas atuou na conversão dos indígenas como também elaborou reflexões sobre o ofício de pregador em seus sermões.

Para Padre Vieira, pregar a palavra de Deus é uma arte que exige três elementos: o pregador com a doutrina, o fiel com o entendimento e Deus com a graça. Numa de suas mais conhecidas metáforas, Padre Antônio Vieira afirma que a semente é a palavra de Deus e o semeador é o missionário, o pregador. E, numa de suas citações em latim, ele lembra que

a palavra de Deus é semente no coração do homem (Verbum est semen Dei)

Além disso, argumentava padre Vieira, a conversão da alma ao cristianismo necessita dos olhos, da luz e do espelho. Nas suas palavras, “o pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.”

 

 

 Sermão da sexagésima
Padre Antônio Vieira

I

(…) Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo, que saiu o pregador evangélico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear, são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura: aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah, Dia do Juízo! Ah, pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare (…)

III

(…)Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três cousas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina. Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte; por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? (…)

X

(…) Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens (…) e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo?(…) 

5. Profeta do Quinto Império

Enquanto se dedicava à atividade de missionário, Padre Vieira arranjou tempo para especulações messiânicas – e concebeu a crença no Quinto Império. Tratava-se de um tempo e de um espaço profetizados, segundo o jesuíta, nas Escrituras Sagradas. Ele sucederia os outros quatro impérios até então existentes: dos assírios, persas, gregos e romanos, respectivamente. Para Vieira, a instalação do reino cristão na Terra seria, ao mesmo tempo, obra temporal e espiritual. Esse Quinto Império seria similar ao paraíso: nele não haveria nenhuma guerra, mas sim pureza e longevidade. A profecia do Quinto Império de Vieira era uma especulação utópica, mas funcionava também como uma forma de legitimar o poder real de dom João IV. Era, enfim, uma teologia política.

 

Vieira foi o grande protagonista do reinado de d. João IV, soberano português após a restauração do trono em 1640. Tornou-se frequentador assíduo do Paço Real e principal conselheiro do rei. Defendeu a adoção de uma política pro-judaica no reino português, de olho no potencial econômico dos grandes mercadores judeus e atuou como negociador de políticas do rei em Paris e na Holanda.
D. João IV. Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal.

Os princípios milenaristas do pensamento de Vieira foram expressos em diversos escritos, como, por exemplo, a carta Esperanças de Portugal ou em sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, elaborada pelo próprio jesuíta quando preso pela Inquisição em 1665. Mas é em um terceiro texto, História do futuro, escrito entre os anos de 1663 e 1665 e publicado muitos anos após sua morte, que estão as bases de sua profecia. Esse texto completa a trilogia do Quinto Império de Padre Antônio Vieira e constrói uma narrativa utópica, provavelmente a primeira escrita em língua portuguesa. Não foi por acaso também que Fernando Pessoa, tenha retomado a profecia de Vieira no poema O Quinto Império, no qual a Europa – e não Roma – seria o último império do mundo.

 

 

 História do futuro
Padre Antônio Vieira

(…) Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.(…)

Hão-se de ler nesta Historia, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o assunto e nome dela.(…)

Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a nova Historia que escrevemos do Quinto Império do Mundo. (…)

Entre as utilidades próprias a dos amigos, não quero deixar de advertir por fim delas, que também a lição desta História [do futuro] pode ser igualmente útil e proveitosa aos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste nome, quiserem antes ser companheiros de nossas felicidades, que padecê-las dobradamente na dor e inveja dos êmulos. Lerão aqui nossos vizinhos e confinantes (que muito a pesar meu sou forçado alguma vez a lhes chamar inimigos, havendo tantas razões, ainda da mesma natureza, para o não serem) lerão aqui com boa conjectura as promessas e decretos divinos, provada a verdade dos futuros com a experiência dos passados: e verão, se quiserem abrir os olhos, um manifesto desengano de sua profecia, conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal, pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantas despesas, quantos trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, com os olhos limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta História do Futuro, e com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem, como é o animo com que ele se escreve! (…)

 

 O Quinto Império (Mensagem – Terceira Parte)
Fernando Pessoa

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião? (…)

6. Vieira e o Brasil

Desde o século XIX, uma questão começou a inquietar biógrafos e historiadores: seria Antônio Vieira um brasileiro ou um português? De fato, o jesuíta nasceu em Lisboa, capital de Portugal, no ano de 1608. Mas o critério de nascimento no território do Estado português – o jus soli, para usarmos a expressão jurídica – seria suficiente para determinarmos a nacionalidade de Vieira? Afinal, se ele nasceu em terras lisboetas, o padre jesuíta se mudou para Salvador ainda criança e ali fez toda a sua formação intelectual desde as primeiras letras no Colégio da Bahia, em Salvador. Sua atuação como missionário e diplomata, por outro lado, não conheceu fronteiras. Na América portuguesa, Vieira atuou no Pará e no Maranhão, onde organizou a catequese indígena, mas também na Bahia, onde faleceu. Padre Vieira viveu também em Lisboa, onde foi conselheiro político do rei dom João IV a partir da Restauração do trono português com o fim da União Ibérica, em 1640, e onde foi preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Hoje não há quem diga que Vieira não seja um personagem da história do Brasil. E ele é também um personagem da história de Portugal. A polêmica é boa e foi muito discutida ao longo das décadas.

Para Vieira e seus contemporâneos não faria sentido falar em brasileiros em oposição clara aos portugueses. A unidade política que ele tinha como referência quando pregava seus sermões ou escrevia as suas cartas era o vasto Império marítimo português que, no século XVII, compreendia regiões tão diversas como o Maranhão, a ilha da Madeira, Angola e Macau. O Brasil onde padre Vieira vivia era considerado por ele uma dentre as várias possessões portuguesas no ultramar, administradas por membros da Corte portuguesa graças às mercês distribuídas pelo rei. Todas elas também palco da atividade constante dos membros da Companhia de Jesus. E se o Brasil era parte do Império, ele devia ser protegido e administrado pelos colonos portugueses.

 

Entre 1624 e 1627, a Bahia foi alvo de ataques holandeses. Em maio de 1625, as tropas desembarcaram em Salvador. Mas a cidade resistiu, os combates foram ferozes, centenas de pessoas morreram. Os holandeses recuaram e Padre Vieira não teve dúvidas: Santo Antônio, em pessoa, tinha comandado a defesa da Bahia e, de quebra, haveria de libertar Pernambuco das mãos dos holandeses. Foi seu primeiro sermão em louvor de Santo Antônio, pregado na igreja do próprio santo, em Salvador.
Chegada dos holandeses à Salvador. Autor: Nicolau Vischer. Data: c. 1624. Acervo: Fundação Biblioteca Nacional.

Vieira presenciou, na Bahia, momentos em que o domínio português na América estava em risco, entre 1624 e 1638. No contexto da União Ibérica, quando Portugal era governado a partir da Espanha pela dinastia dos Habsburgos, os holandeses tentaram invadir Salvador por várias vezes. Na primeira delas, em maio de 1624, chegaram a tomar a cidade. Nessa época, Antônio Vieira era um jovem padre que atuava como escriba da Companhia de Jesus e viveu de perto o “pesadelo holandês”.

Seu primeiro sermão público, de 1633 e intitulado Sobre a verdadeira coragem, teve como tema as invasões holandesas na Bahia e em Pernambuco. O universo católico, monárquico e português de Vieira estava sob ameaça, e ele não titubeava: era preciso pegar em armas para defendê-lo, ir à guerra contra os holandeses. Nos dois textos citados o jesuíta roga a Deus para que ele não deixe a Bahia cair nas mãos dos flamengos, que seriam duplamente inimigos: por serem invasores das terras do Brasil e por serem calvinistas, o que naquele contexto significava ser herege.

Com a instalação dos holandeses na capitania de Pernambuco e a formação do que se denominou, à época, de Nova Holanda a partir de 1630, Vieira acentuou os ataques aos flamengos em seus sermões. E passou, também, a rezar pela vitória militar dos portugueses e a comemorar as derrotas do invasor como no caso do Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda, pregado em 1640 na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na cidade da Bahia.

 

 

 Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda
Padre Antônio Vieira

(…) Muita razão tenho eu logo, Deus meu, de esperar que haveis de sair deste sermão arrependido; pois sois o mesmo que éreis, e não menos amigo agora, que nos tempos passados, de vosso nome: Propter nomen tuum. Moisés disse-vos: Ne, quaeso, dicant: Olhai, senhor, que dirão. E eu digo e devo dizer: Olhai, senhor, que já dizem. Já dizem os hereges insolentes com os sucessos prósperos, que Vós lhes dais ou permitis: já dizem que porque a sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece e somos vencidos. Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal, porque não faltará quem os creia. Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra vossa Fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome? Que diga o herege (o que treme de o pronunciar a língua), que diga o herege, que Deus está holandês? Oh não permitais tal, Deus meu, não permitais tal, por quem sois. Não o digo por nós, que pouco ia em que nos castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco ia em que o destruísseis; por Vós o digo e pela honra de vosso Santíssimo Nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado: Propter nomen tuum. Já que o pérfido calvinista dos sucessos que só lhe merecem nossos pecados faz argumento da religião, e se jacta insolente e blasfemo de ser a sua verdadeira, veja ele na roda dessa mesma fortuna, que o desvanece, de que parte está a verdade. Os ventos e tempestades, que descompõem e derrotam as nossas armadas, derrotem e desbaratem as suas; as doenças e pestes, que diminuem e enfraquecem os nossos exércitos, escalem as suas muralhas e despovoem os seus presídios; os conselhos que, quando Vós quereis castigar, se corrompem, em nós sejam alumiados e eles enfatuados e confusos. Mude a vitória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia, que só a fé romana, que professamos, é fé, e só ela a verdadeira e a vossa. (…)

Tirais também o Brasil aos portugueses, que assim estas terras vastíssimas, como as remotíssimas do Oriente, as conquistaram à custa de tantas vidas e tanto sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa fé (que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis), que por amplificar e estender seu império. Assim fostes servido, que entrássemos nestes novos mundos, tão honrada e tão gloriosamente, e assim permitis, que saiamos agora (quem tal imaginaria de vossa bondade), com tanta afronta e ignomínia! Oh como receio que não falte quem diga o que diziam os egípcios: Callide eduxit eos, ut interficeret et deleret e terra; Que a larga mão com que nos destes tantos domínios e reinos não foram mercês de vossa liberalidade, senão cautela e dissimulação de vossa ira, para aqui fora e longe de nossa pátria nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes de todo. Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim? Oh quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas! (…)

7. Atividades propostas

Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.

 

Poesia & Prosa – Atividades – Padre Vieira