Antônio Frederico de Castro Alves era jovem, era poeta, era romântico – e era lindo. A seus pés, até hoje, jazem incontáveis corações. E ele se sabia belo. Antes de sair a passeio, sempre alinhadíssimo, passava a mão pelos cabelos negros, punha o chapéu e – assim conta a lenda – exclamava, frente ao espelho:
Tremei, pais de família! Don Juan vai sair!
A mulher que nunca saiu de seu coração, porém, foi uma só, a atriz portuguesa Eugênia Câmara, dezesseis anos mais velha, amparada pela fama e por uma multidão de admiradores. A atriz também não teve como resistir a ele que, quase um menino, declamava para ela, com voz expressiva e sonora, do alto dos camarotes do teatro, poemas de amor, ao final de cada representação. Poeta e atriz viveram juntos por dois anos; foi para ela que Castro Alves escreveu a peça de teatro Gonzaga ou a revolução de Minas. Mas foi Eugênia que o mandou embora e lhe atirou os livros e os demais pertences na rua – não deve ser nada fácil amar um grande poeta…
Seu tempo de vida foi curto – Castro Alves morreu jovem, com 24 anos. Contudo, ele sabia o que queria: os tempos mudavam e pediam um novo poeta para corrigir as injustiças e os desacertos do mundo. Para transformar esse mundo que estava errado, criou uma poesia capaz de “chorar a humanidade” e de ser “o arauto da liberdade”. Seu verso era “filho da tempestade” e “irmão do raio” e ele compunha para ser recitado diante da multidão, em praça pública – fazia versos para irem direto a alma do ouvinte e comovê-lo. Acima de tudo, sua poesia foi inimiga da escravidão e a esse combate Castro Alves dedicou boa parte de sua vida. Morto, o poeta continuou, por meio de seus versos, a dirigir-se ao povo, a conquistar sua atenção, a emocioná-lo, a convencê-lo. Talvez, por isso, até hoje, no Brasil, quando se fala em um poeta, ainda somos capazes de ir procurar no fundo da nossa imaginação, a figura de um jovem magro, pálido, basta cabeleira negra ondulada, olhar febril, voz emocionada, gestos largos, ousado e atrevido: Castro Alves.
SILVA, Alberto da Costa e. Castro Alves. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MASCARENHAS, Maria da Graça. Castro Alves. Brasília / Rio de Janeiro: Odebrecht; Fundação Banco do Brasil, 1997.
Havia escravizados destinados às casas grandes – os escravizados domésticos – e os escravizados do eito, os numerosos cativos alocados no trabalho do campo, sempre considerados pela quantidade e não pela qualidade. Esses chegavam a trabalhar de 18 a 20 horas, e alcançavam números elevados nas fazendas: fazendas de cana descrevem a posse nos testamentos de mais de 100 escravizados. Por isso, mal se sabia o nome ou a idade Em geral até dez anos as idades eram chamados de crianças. Dos 12 para cima eram adultos. A partir dos 40 eram tratados como escravizados “velhos”.
Os escravizados domésticos conheciam outro tipo de cotidiano. Menos numerosos, conviviam com a família nuclear de forma mais próxima, desempenhando funções como cozinheiras, babás, pajens, amas de leite, e toda uma criadagem que acompanhava os senhores no seu dia a dia.
Havia também os escravizados urbanos que percorriam as ruas da cidade, trabalhando como alugados e jornaleiros. Seu tempo era alugado por dia ou semana e o escravizado devia entregar ao senhor ou à senhora, ao final da empreitada, a soma do seu trabalho. Atuavam como pintores, pedreiros, carpinteiros, estivadores, alfaiates, ferreiros, costureiros, cocheiros, carroceiros, barbeiros, sapateiros, e uma infinidade de profissões.
As mulheres eram também domésticas, cozinheiras, arrumadeiras, amas, engomadeiras, lavadeira quituteiras: vendiam nas ruas das cidades doces, mingaus, bolos, caldo de cana, caruru e receitas vindas da África. Escravas também foram utilizadas como prostitutas nas regiões portuárias vendendo seu corpo e levando o resultado para seu patrão.
A canção do africano
Castro Alves
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão (…)
Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro. (…)
Tragédia no lar
Castro Alves
Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas,
Por um alcouce cruel, (…)
Vem comigo, mas… cuidado…
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel (…)
(…) A cor denuncia vítimas antigas de explorações
Trazidos em porões e navios negreiros
Tratados como animais, vendidos a fazendeiros
Vivendo em cativeiros
Negociados como mercadoria
Enriquecendo a classe nobre, hoje chamada burguesia
Deixou pra trás dialetos e crença
Caçados, mortos e açoitados quem tentou resistência
Tratados como gado, sem direito à educação
Emudeceram seus tambores, amaldiçoaram sua religião
Alguns morreram de fome, de cede, de frio
Corpo magro, cheio de marcas e o estômago vazio (…)
O Navio negreiro é o mais perfeito de todos os poemas de Castro Alves para voz alta – a sonoridade das palavras nos faz ver. Daí o impacto que o poema provoca na audiência e sua força política capaz de ganhar adeptos para a causa abolicionista. E suas décimas em redondilhas maior evocam a canção popular. A mirada do albatroz – a águia do oceano – em panorâmica, cede lugar ao mergulho: o olhar desce e se ajusta, aproxima o barco, enquadra o convés, detalha os personagens. Também abre um topos, isto é, um ponto original de diálogo com as linguagens da cultura brasileira que atravessa todo o século XX: mirada idêntica irá se repetir no sobrevôo do condor, em Os Sertões, de Euclides da Cunha; no mergulho da águia, em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; no voejo do gavião, em Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas; no vôo panorâmico do jereba cantado por Tom Jobim.
Durante os séculos XVI e XVII, uma caravela portuguesa era capaz de transportar 500 cativos – um pequeno bergantim até 200 escravos. Já no XIX, passou-se a utilizar navios a vapor para reduzir o tempo da viagem, sendo que a média era de até 350 escravos por navio. Para otimizar os custos, colocava-se o maior número possível de pessoas no navio, o que, muitas vezes, correspondia a uma queda no abastecimento de víveres. A taxa de óbitos foi sempre alta, com uma média nunca abaixo de 5% dos passageiros. Muitas eram as causas das mortes. Desarranjos gastrointestinais, disenterias e o “bloody flux” (nome dado aos surtos de infecções intestinais) eram frequentes. Também se morria de varíola, sarampo, febre amarela e tifo. A mistura entre as muitas Áfricas começava já durante a viagem, com os escravizados trocando doenças, mas, sobretudo, culturas, práticas, amizades, cultos, crenças, segredo de cura e religiões.
Foram transportados para as Américas de 8 a 11 milhões de africanos escravizados durante todo o período do tráfico negreiro. Desse total 4,9 milhões tiveram como destino final o Brasil, onde a escravidão vigorou durante mais de três séculos. Um deslocamento desse vulto acabou alterando costumes, cultura e a própria estrutura social e política do país. E nunca mais saiu da memória dos brasileiros.
O navio negreiro
Castro Alves
(…) ‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?
‘Stamos em pleno mar… Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas… (…)
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais… não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu ali… que quadro de amarguras!
É canto funeral!… Que tétricas figuras!…
Que cena infame e vil!… Meu Deus! Meu Deus! Que horror! (…)
Era um sonho dantesco… O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar do açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças… mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja…
Se no chão resvala,
Ouve-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais (…)
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… cum´lo de maldade,
Nem são livres p’ra… morrer… (…)
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!… (…)
E existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!… (…)
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!…
Silêncio!… Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no seu pranto… (…)
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!… (…)
… Mas é infâmia de mais… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
(…) Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kawo Kabiecile Kawo
Okê arô oke (…)
A África de Castro Alves era o continente da infelicidade e da tragédia. Sua África era seca e desesperada, sem florestas, sem savanas, sem rios nem lagos, sem animais, flores ou beleza. A verdade de sua poesia não era nem a geografia, nem a memória – o retrato do horror do escravismo exigia o deserto. Seus versos desenham uma África muito diferente daquela onde os escravos punham o paraíso perdido e a qual aspiravam, em algum dia venturoso, em corpo ou em espírito, a regressar. Na trama do imaginário dos escravos, quem alinhavava o cenário, a paisagem e o enredo da terra natal era a saudade – uma aflição da alma que combina tristeza, melancolia e prazer. Saudade é uma melancolia feliz.
A canção do africano
Castro Alves
(…) Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem; (…)
O sol lá faz tudo em fogo
Faz em brasa toda a areia. (…)
(…) São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão
Homens simples, fortes, bravos
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão
São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm (…)
Vozes d’África
Castro Alves
(…) Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?… (…)
Qual Prometeu, tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
– Infinito: galé!…
Por abutre – me deste o sol candente,
E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé (…)
Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida, marcho em vão!
Se choro… bebe o pranto a areia ardente;
Talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão (…)
A violência da escravidão era naturalizada e o sistema escravista parecia imutável. Um sistema que prevê a posse de um homem sob outro só pode se pautar pela violência. A própria atividade produtiva, repetitiva, cansativa era em si violenta. O trabalho compulsório impunha introjetar a autoridade do senhor e uma sensação constante de medo, lograda pelo castigo disciplinar e exemplar muitas vezes aplicado de forma coletiva. Punições públicas, o tronco, o uso do açoite como forma de castigo e humilhação, os ganchos e pegas nos pescoços para evitar as fugas nas matas, as correntes prendendo os escravos ao chão. Construiu-se, no Brasil, toda uma arqueologia da violência que tinha como objetivo constituir a figura do senhor como autoridade máxima, assim como criar a memória corporal e das marcas de dominação.
Imerso num país onde a escravidão era um fato normal da vida e estava ali para sempre Castro Alves apreendeu e transformou em verso o que ela continha de moralmente horroroso e iníquo. Defendeu a luta dos escravos pela liberdade e popularizou a causa abolicionista levando-a a se espalhar cada vez mais na sociedade brasileira do século XIX. É com a denúncia da escravidão que Castro Alves se torna nacionalmente conhecido, em sua época e para nós.
A escravidão é o nosso momento traumático, de fundas conseqüências para viabilidade do Brasil contemporâneo. O nó da violência está encravado na mais remota história de um país como o nosso cuja vida social foi fundada na escravidão. Fruto da nossa herança escravocrata, a trama dessa violência é comum a toda a sociedade, resiste inviolável, se dispersa e se repõe na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação, reconhecidas por nós ou não.
Bandido negro
Castro Alves
(…) E o senhor que na festa descanta
Pare o braço que a taça alevanta,
Coroada de flores azuis.
E murmure julgando-se em sonhos:
‘Que demônios são estes medonhos,
Que lá passam famintos e nus?’ (…)
Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
Nós quebramos as nossas algemas…
Este é o filho do ancião que mataste.
Este – irmão da mulher que manchaste… (…)
Cai orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz (…)
(…) Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
África
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
África
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
África (…)
A visão dos mortos
Castro Alves
(…) Aonde a terra que talhamos livre,
Aonde o povo que fizemos forte?
Nossas mortalhas o presente inunda
No sangue escravo que nodoa o chão (…)
Saudação a Palmares
Castro Alves
Nos altos serros erguido
Ninho d’águias atrevido,
Salve! – país do bandido!
Salve! – pátria do jaguar! (…)
Palmares! a ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Que no soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
E provocaste a rajada
Solta a flâmula agitada
Aos uivos da marujada
Nas ondas da escravidão (…)
Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.