Waly Dias Salomão nasceu em 1943, na cidade de Jequié, sudoeste da Bahia. Mudou-se para Salvador na adolescência onde, em 1967, formou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia, mas jamais exerceu a profissão. Embarcou para o Rio de Janeiro, sem dinheiro e sem recursos. Sentia necessidade de remodelar-se, queria se envolver com cultura. Na capital carioca trabalhou como redator e colaborou em diversas publicações e jornais. Conheceu Chacal, Torquato Neto, Caetano Veloso, Jards Macalé, Hélio Oiticica, Gilberto Gil já conhecia de Salvador e pronto! Estava definitivamente envolvido com a produção cultural.
No início do ano de 1970, morando em São Paulo, Waly Salomão foi preso, por porte de maconha. Passou cerca de 18 dias em uma cela do Pavilhão II, no Carandiru. A experiência, segunda avaliação do próprio Waly, representou paradoxalmente uma possibilidade de libertação. O artista conseguiu colocar todas as suas energias no ato de escrever. Dois anos depois publicava seu primeiro livro de poemas: “Me segura que eu vou dar um troço” que reúne os textos produzidos enquanto estava no presidio. Sua poesia possui um caráter libertário e antiacadêmico, e o poeta se tornou um marco da contracultura do país. Em 1974, Waly Salomão e Torquato Neto, publicaram a revista Navilouca – Almanaque dos aqualoucos. Em edição única, o almanaque misturou e uniu diferentes tipos de poéticas e visualidades.
A década de 1990 foi especial para Waly Salomão, naquilo que se refere à produção literária. Em 1993, ele publicou Armarinho de miudezas. Três anos depois, Algaravias: câmara de ecos. O livro foi um sucesso de público e crítica. Recebeu o Prêmio Alphonsus Guimaraens da Biblioteca Nacional e o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro.
Em 2003, Waly Salomão assumiu o cargo de secretário nacional do livro e da leitura, a convite de Gilberto Gil, então Ministro da Cultura. Ele foi o autor do projeto Fome de leitura, cujo objetivo era acrescentar livros na cesta básica dos brasileiros. Após sua morte, em 2003, graças ao trabalho de Marta Braga, viúva do poeta, e de seus dois filhos, Omar e Khalid, mais um livro de Waly Salomão foi publicado. A obra Pescados vivos mistura toda maturidade intelectual do poeta com sua irreverência e empolgação.
SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MORICONI, Italo (org). Destino Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
Em certa ocasião, o crítico literário Antônio Cícero descreveu seu amigo Waly Salomão como um poeta polifônico. A multiplicidade de vozes e sons é, sem dúvida, um traço característico de sua obra. Suas palavras e impressões se entrecruzavam com as palavras de outros autores, dando a forma de sua literatura. Os ecos de outros escritos o influenciaram de tal maneira, que os acrescentava à seu próprio texto. Ele não estimulava uma hierarquia de vozes: elas eram múltiplas, se enlaçavam, se balançavam e compunham juntas seu estilo tão próprio e característico. Essa polifonia foi materializada pelo uso constante da metalinguagem e da intertextualidade na composição de seus textos.
Mergulhado em um período de intensas mudanças sociais, políticas, e culturais, Waly Salomão lançou novos olhares sobre o fazer poético. Sua literatura se adaptou às metamorfoses do mundo, absorvendo suas multiplicidades e sua complexidade. Sempre irreverente e apaixonado pelas diferenças, desenvolveu um mosaico polifônico, onde música, poesia, prosa, anedotas e discursos, se entrecruzam em um espaço artístico próprio. Diferentes vozes e influências foram materializadas em uma infinidade de linguagens, e dão o tom de sua obra. O poeta baiano tinha sede do diferente, do complexo, do múltiplo. Através de uma poesia agressiva e marginal, confrontou discursos ao mesmo passo que os abraçou, para expressar todas as contradições da sociedade.
Waly Salomão era irrequieto. Em 1996 foi lançar no Shopping da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, seu livro de poemas Algaravias. Combinou com as bandas de olodum e a ala de capoeira da ONG Vigário Geral de promoverem a invasão do local durante o lançamento. Uniu artistas renomados e a população do morro em um espaço único. Declarou sobre o episódio: “Gosto desses cruzamentos, dessas misturas, intercâmbios. Quem gosta de água parada é mosquito da dengue.” Foi proibido pela administração do shopping de lançar qualquer outro livro no local.
Waly Salomão. Fonte: Revista Navilouca – Almanaque dos aqualoucos, 1974.
Planteamiento de Cuestiones
Waly Salomão
FORÇAR A BARRA:
Estou possuído da ENERGIA TERRÍVEL que os
Tradutores chamam ÓDIO-ausência de pais: recha-
çar a tradição judeu-cristiana – ausência de pais
culturais –ausência de laços de família –
Nada me prende a nada –
Produzir sem nada esperar receber em troca:
O mito de sisifud.
Produzir o melhor de mim pari-passu com a pedra
da esperança de recomPensão Paraíso.
FIM DA FEBRE
DE
PRÊMIOS & PENSÕES
DUM
POETA SEM
LLAAUURREEAASS (…)
(…) Sua cuca batuca, eterno zig-zag
Entre a escuridão e a claridade
Coração arrebenta, entretanto o canto aguenta
Brilha no tempo a voz vitoriosa (…)
O legado de Wallace Stevens
Waly Salomão
Assim como quem
– agnóstico, cético, sarcástico incréu –
estende réstias de alho por toda a casa,
para afastar meu agouro.
Assim como quem plurifica
a ferocidade da mente,
zela pela aura, aurora de cada palavra,
com ritmo penetra, sexualiza a fala,
colore com finuras, matizes de papel de seda,
o balão do pensamento
tornando-o inda mais chiaroscuro, espermático;
e com cerol de vidro moído, cola de sapateiro,
afia, tempera o laço mágico
que rabeia a sorte, compele o futuro
e provê um canto, um giro diverso para cada ato (…)
Quem fala que sou esquisito, hermético
É porque não dou sopa, estou sempre elétrico
Nada que se aproxima, nada me é estranho
Fulano sicrano e beltrano
Seja pedra, seja planta, seja bicho, seja humano (…)
Orapronobis – Tira teima da cidadezinha de Tiradentes
Waly Salomão
Café coado.
Cafungo minha dose diária de MURILO e DRUMMOND
Lápis de ponta fina.
Lá detrás daquela serra
Estamparam um desenho de TARSILA na paisagem.
Menino que pega ovo no ninho de seriema.
Pessoas deitadas nos bancos de calcário
Dão a vida por um dedo de prosa.
Cada vereador deposita na mesa da câmara
A grosa de pássaros-pretos que conseguiu matar
Árdua labuta pra hoje em dia
Pois quase já não há
Pássaros-pretos no lugar.
De tarde gritaria das maritacas
Encobre o piano arpejando o Noturno de CHOPIN.
Bêbado escornado no banco da praça.
Orlando Curió cisma um rabo de sereia do mar debuxado
no lombo do seu cavalo.
A meia-lua
E a estrela preta
De oito pontas
Do teto da igreja
Do Rosário dos Pretos.
Que luz desponta
Da meia-lua
E que centelha
Da estrela preta de oito pontas
Do teto
Da Igreja do Rosário dos Pretos?
Pra quem aponta
A luz da meia-lua
E pra quem cintila
Preta de oito pontas
A estrela desenhada no teto
Da igreja do Rosário dos Pretos? (…)
Irreverente, criativo, polêmico e dotado de um humor ácido, Waly Salomão foi por diversas vezes comparado ao poeta Gregório de Mattos, o “Boca do Inferno”. Assim como ele, usou e abusou da ironia na composição de sua obra. Tinha grande apreço por derrubar mitos e ídolos, através de sátiras críticas. Nada lhe escapava. Não perdoava nem mesmo sua cidade natal:
Se bicha fosse bala, se maconha fosse fuzil, Jequié estava pronta, pra defender o Brasil.
Para compreender Waly Salomão, é preciso despojar-se de todas as formas óbvias. Sempre debochado e inquieto, compõe pela ironia críticas contundentes ao homem e à sociedade. Através de uma linguagem poética aguda e carregada de polêmicas, indicava para o leitor o caminho da reflexão. Era um antiacadêmico convicto e não se furtava do direito de analisar com zombarias agudas, diversos cânones da literatura e da filosofia. Era um marinheiro da contracultura, um “marujeiro da lua”. Desprendido de modismos acadêmicos, brincava com os significados das palavras e através de uma trama poética bem construída, ironizava até o mais preparado dos críticos literários. Waly Salomão constrói e desconstrói imagens, de si mesmo e dos outros. No poema Lausperene por exemplo foi claro: sou contra a musicalidade nos meus versos. Ao final da leitura desse mesmo poema, no entanto, qual não será a surpresa do leitor ao perceber que as estrofes finais trazem justamente um modo de rimar musical. Sátiras corrosivas e humor ácido eram para o poeta baiano, o antidoto perfeito para combater as inverdades da humanidade.
Lausperene
Waly Salomão
Quase qualquer antologia
da atual poesia nacional:
sequência segue sequência
de poema-piada
e pseudo-haicai.
Ou o pior de tudo
e o mais usual:
brevidade-não concisão
brevidade-camuflagem
de poema travado
engolido pra dentro.
Belo é quando o seco,
rígido, severo
esplende em flor.
Seu nome: Cabral.
Nome de descobridor (…)
Lá vem o poeta com sua coroa de louros
Bertalha, agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta do planeta malagueta
Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia, na bagunça do dia-a-dia
Sequestraram a fonética (…)
Novelha cozinha poética
Waly Salomão
Pegue uma fatia de Theodor Adorno
Adicione uma posta de Paul Celan
Limpe antes os laivos de forno crematório
Até torná-la magra-enigmática
Cozinhe em banho-maria
Fogo bem baixo
E depois leve ao Departamento de Letras
Para o douto Professor dourar. (…)
Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema. (…)
Hoje
Waly Salomão
O que menos quero pro meu dia
polidez, boas maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás…)
Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.
Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.
Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d’água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.
Hoje (…)
O ano de 1972 marca a estreia de Waly Salomão como escritor, com o lançamento do livro Me segura que eu vou dar um troço. O jovem poeta baiano apresentava ao país, já em sua primeira obra, características e traços singulares, que o acompanharam em toda sua trajetória. Waly Salomão jamais abriu mão da experimentação e fazia da escrita um ato de rebeldia à tradição cultural preestabelecida. O poeta amava a liberdade de criação, recusava rótulos, limites e definições. Gostava mesmo era da fusão de gêneros, da associação livre de palavras e da construção caótica de frases e sentidos. Era um amante da experimentação, um inconformado com estilos e normas preestabelecidas: queria o coloquialismo, o jogo de sentidos, as transições abruptas. Waly Salomão sempre compôs e escreveu sob a firme negação da linguagem convencional. Seu objetivo era claro: desconstruir toda forma enrijecida do fazer poético. Dizia o poeta baiano:
Minha sede não é qualquer copo d’água que mata.
Não se acomodava e não se contentava com um leitor passivo. Gostava de provocar e de intrigar. Queria seus leitores atentos, em alerta, instigados e sedentos pela experimentação poética. Waly Salomão foi a personificação da irreverência. Como diria Silviano Santiago, “Waly não gosta de se disfarçar em elefante. Era o próprio paquiderme no guarda-louça do mundo cotidiano” Um poeta de excessos? Talvez. Mas era, sobretudo, um poeta dedicado a abalar as convenções. Um rebelde da forma e da arte.
Diário querido
Waly Salomão
Eden edenias edenidades:
Gosto de zanzar zanzar feliz zanzar no aprazível ar passeios grandes espaços latifúndios nalma, dia inteiro sentado no alpendrado da casa sobre a lagoa passei relendo voz alta João Grande Sertão: Veredas: noitinha noitinã saio me sentindo mateiro solitário leitor, assim quando apareço, sertanejo leal sem ânimo competitivo sem jagunçagens sincero sério sereno sertanejo leal devagaroso destes que aprenderam a ler o escrito das coisas licenças rogando ramo jasmim branco sem peçonhas cheiroso nas todas duas mãos por trás sem figurar fera escrita parecença nenhuma se sabendo vezeiro nos usos fiduciais desusados, defronte dos ditos amigos carieocos, mesmo fogem assustados do leão do meu coração.
Sailormoon: este sumo retrato, o dedo de Deus no gatilho: Sailormoon:
– Valei me Prispe peixe do mar.
Guerreiro, sob matraquear de metralha, retrucar recupera fala: – De primeiro, pinguiçoso, só perdia ponto; agora, mateiro matreiro, ganhei malícia malandra. Lutar em todas as frentes: andar sobre s águas e saber o caminho das pedras: sereno doido manso ouriçado: um só e todos. Sadio sarei sanei – cicatriz não trago, eu quando estou cansado durmo. Sadio – tomo minha dor de cabeça como prova de que tenho cabeça dura para dependurar peruca. (…)
Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento
Encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
Faíscas das britas e leite das pedras.
Acordo;
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
Acordo (…)
Apontamentos do pav 2
Waly Salomão
SIRIO desponta de dia
DILÚVIO
Confusão da aflição do momento com o DILÚVIO.
O DILÚVIO em cada enchente. reincarnação.
NOÉ = intérprete de sinais. O sacassinais. O mensageiro
da advertência.
500 anos = BR.
500 000 anos = idade aproximada da espécie humana.
Memória popular de uma região perdida, onde uma humanidade sábia e progressista passou anos felizes em santa e sábia harmonia.
Terra das Hespérides
Terra das maçãs de ouro
Cinemex: um banquete fantástico de comidas baianas: tribex: regado com batidas: calor entorpecente: foquefoque como nas farras romanas de Holly: Morro de São Paulo: frutos tropicais, mil caranguejos: cachos de uva: mulheres levantando as saias: gente com a cara lambuzada de vatapá, gente dentro das panelas de barro: langor: as pessoas esparramadas como nas telas de Bruegel: Bahia, umbigo do mundo: Portas do Sol: cidade da colina: Luz Atlântica: Jardim da Felicidade.
Atlântida — o continente perdido pralém das colunas de Hércules e que unia a Europa com a América; onde já se observavam os céus e se faziam cálculos astronômicos; adoradores do sol; onde provavelmente foi falada a língua-mãe.
Olhadela por trás dos bastidores. (…)
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general (…)
XIII em diante
Waly Salomão
Tenho fome de me tornar em tudo que não sou tenho fome de fiction ficciones fictionários tenho fome das fricções de ser contra ser tudo que não sou ser de encontro a outro ser tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra douto doutra em tudo em tudo que não sou me tornar o outro de me me tornar o nome distinto o outro distinguido por um nome distinto do meu nome distinto tenho fome de me tornar no que se esconde sob o meu nome embaixo do nome no subsolo do nome o sob nome o sobnome e por uma fresta num abraço contíguo penetra passa habitar o fictionário que me tornei em tudo que feixe de não fixas ficciones sou em tudo por tudo por uma fresta de tudo por uma fresta tudo se fixa por uma toda por uma toda fresta as fixações penetram passam a habitar o ficcionário que me habituei em ME me ME tornar em tudo todo o TUDO personas personagens bailes de máscaras reais que pessoas que penetram que pessoas penetram pelas frestas e num abraço contínuo se casam fazem casa e se inscrevem e se incrustam máscaras moluscas no meu rosto me tornar uma escala crescente milesimal centesimal decimal inteira a face dum baile de máscaras reais vir a ser este fictionário que não sou me casar que ainda AINDA que não sou e que sou sempre sempre quando quando sempre tenho fome qual a escala crescente ou decrescente pra saber se um milésimo centésimo décimo inteiro todo ou fração todo meu fictionário ser se revelou no abraço contínuo contíguo em que se desvelou tornar tudo (…)
Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.