Em 1897, com a missão de cobrir para o jornal O Estado de S. Paulo o deslocamento das tropas republicanas durante a quarta e última expedição contra Canudos, o jornalista Euclides da Cunha levou um choque. Republicano convicto, ele havia embarcado para a Bahia, com a certeza de que a República iria derrotar uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos, acoitados em um arraial miserável – e, ainda por cima, monarquistas. Atônito, descobriu, nos sertões baianos, uma guerra longa e misteriosa, um adversário com enorme disposição para o combate, um refúgio sagrado, uma comunidade organizada que oferecia melhores condições de vida do que outras regiões do sertão nordestino e uma terra desconhecida. No impacto da descoberta, anotando tudo o que via e ouvia, Euclides da Cunha trocou de certezas, adotou nova perspectiva e tornou-se um grande escritor. Sua história assumiu um tom de denúncia. Foi muito além da reportagem de guerra: ele insistiu em revelar o efeito provocado pelas secas na paisagem arruinada do sertão baiano e a devastação do meio ambiente produzida pelas queimadas no semiárido nordestino; inscreveu na natureza uma feição dramática capaz de projetar, no enredo de sua narrativa, imagens de medo, solidão, abandono; reconheceu no mundo sertanejo uma marca do esquecimento secular e coletivo do país.
Em Os sertões, publicado em 1902, Euclides da Cunha retomou a história da Guerra contra Canudos com um enfoque mais amplo do que nos artigos de jornal. Mas manteve o mesmo tom de acusação. Responsabilizou a Igreja, a República, o governo estadual baiano e, sobretudo, o Exército, pelo massacre dos habitantes de Canudos. Denunciou a guerra contra o arraial de sertanejos como fratricídio, matança entre irmãos. Projetou sobre as plantas da caatinga a tragédia de Canudos inscrita na própria natureza, com visões do desfecho da guerra: a decapitação dos prisioneiros, o calvário dos resistentes, dizimados por fome, sede, doenças e pelas balas do Exército. Seu livro, Os sertões, é um livro-monumento. É o memorial de Canudos.
VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hileia. Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Unesp, 2009.
Quando Euclides da Cunha foi enviado pelo jornal O Estado de São Paulo à Bahia, em agosto de 1897, para cobrir os últimos momentos da Guerra de Canudos, o escritor desejava também elaborar um trabalho histórico sobre o conflito, provisoriamente intitulado A nossa Vendéia, em referência à revolta camponesa monarquista e católica ocorrida na região da Vendéia, França. Sua ideia era narrar a barbárie sertaneja em sua infame guerra contra a República. Mas o que Euclides da Cunha vivenciou naqueles grotões transformaria suas convicções mais profundas e mudaria o caráter de seu livro: de relato de guerra, produziu uma nova interpretação sobre o Brasil.
Euclides da Cunha ingressou na Escola Militar da Praia Vermelha com 20 anos, e lá erigiu e fortaleceu os ideais que defenderia até o fim da vida: o amor pela República e a convicção no positivismo. Por meio da imprensa, defendeu a nova forma de governo, que veria despontar em 1889. Em pouco tempo, contudo, o escritor se decepcionaria com os caminhos tomados pela República. A guerra sertaneja, contudo surgia, aos seus olhos, como a chance de regenerar a vida política, dando-lhe novo impulso e direção. Era o estopim que permitiria reacender a chama revolucionária.
Levando na bagagem a certeza de um lugar inóspito, território da barbárie, símbolo do atraso, negação de tudo o que concebia como povo e nação, Euclides da Cunha viveria em Canudos uma reviravolta de opiniões. O percurso interpretativo percorrido pelo autor nos sertões baianos e expresso por ele no livro Os sertões, publicado em 1902, significou um profundo exame de consciência, não só individual, mas coletivo.
Na escrita de Os sertões, Euclides da Cunha questionou as possibilidades políticas de uma República disposta a realizar a eliminação do outro, habitante diverso de um mesmo Brasil. A rigor, esse é o paradoxo com que ele alinhavou sua descoberta e principal argumento: a barbárie não estava confinada num recanto desconhecido e esquecido, o litoral não se opunha ao sertão. Para Euclides,
O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral.
O que o autor revelou em Os Sertões é que não existia um Brasil unitário e homogêneo, mas sim um país repleto de párias, uma gente condenada a viver “expatriada dentro da própria pátria”. Diante do fosso existente entre o ideal republicano e a real República brasileira, a saída apontada por Euclides da Cunha foi a construção de uma nova e autêntica nacionalidade, que incorporasse as margens. Ao lançar mão do conceito de sertão para repensar o tripé povo, nação e República, Euclides da Cunha tornou essa categoria um tema-chave do pensamento social brasileiro. Graças a ele, os homens da primeira geração republicana conseguiram redescobrir o Brasil no sertão, assim como as gerações futuras, que continuam, até hoje, a fazê-lo.
Carta de Euclides da Cunha para Escobar. Lorena, 25 de dezembro de 1901.
Euclides da Cunha
(…) E se como eu, pensas que somos desventurados […] numa farsa lastimavelmente triste; e julgar como eu julgo, que este país é organicamente inviável; e se comigo chegaste – rigorosamente, como no final de um teorema – à conclusão desanimadora de que chamamos de política a uma grande conspiração contra o caráter nacional – se tudo isto é exato, estamos ainda formados, juntos, na mesma linha avançada e superior dos céticos que ao menos não terão desapontamentos ou desilusões. (…)
(…) Capitão jagunço
Eu gosto de furdunço
Em Canudos
Fui guia das tropas
Jogando os irmãos contra os irmãos
Não é mentira não
Conselheiro se julgava o messias do sertão (…)
Os sertões. Capítulo II. Gênese do jagunço. Um parêntesis irritante
Euclides da Cunha
(…) Abramos um parêntesis…
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremadamente, através de largos períodos entre os quais a História é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se acrescentam, subtraem-se ou destroem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mais frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores. (…)
Vê
A matadeira vem chegando
No alto da favela
No balanço da justiça
Do seu criador
Matadeira vem chegando
No alto da favela
No balanço da justiça
Salitre, pólvora, enxofre, chumbo
O banquete da Terra
O teatro do céu
Os sertões. Capítulo II. Gênese do jagunço. Um parêntesis irritante
Euclides da Cunha
(…) É que nessa concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva, o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de esforços; é alguma coisa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade. É a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio. As leis naturais pelo próprio jogo parecem extinguir, a pouco e pouco, o produto anômalo que as viola, afogando-o nas próprias fontes geradoras. O mulato despreza então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida; o mamaluco faz-se o bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente, sobre as cabildas aterradas…
Esta tendência é expressiva. Reata, de algum modo, a série contínua da evolução, que a mestiçagem partira. A raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a, obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu — porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança — , como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas ? (…)
(…) Os desertos se encontram de várias formas
Seja no espírito no solo ou na mente através de idéias tortas
Que produzem gente morta em escala industrial
Guerra pela terra a pedra contra o tanque
Guerra altera a terra nada será como antes
Na inversão dos papéis do pequeno Davi contra Golias, o Gigante
Como os barões das mega-corporações (…)
Os sertões. Capítulo V. Canudos – Antecedentes – Aspecto Original.
Euclides da Cunha
(…) Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos . . .(…)
Euclides da Cunha permaneceu em Canudos menos de três semanas (em uma guerra que durou onze meses), tempo absolutamente insuficiente para se elaborar, dentro dos padrões científicos praticados à época, um tratado sobre uma terra e um homem até então desconhecidos, e sobre uma luta precariamente assistida. Como então o autor construiu seus argumentos? Quase todas as informações factuais e muitas de suas avaliações e reflexões foram retiradas de outros autores, estudiosos e intelectuais. Pouquíssimas de suas fontes eram primárias; muitos dos depoimentos por ele utilizados eram de pessoas que não haviam participado da guerra, mas que sabiam por “ouvir dizer”. As cartilhas religiosas, preces e profecias encontradas no arraial foram erroneamente atribuídas à Antônio Conselheiro, e foram base para todo o discurso acerca do caráter messiânico e sebastianista do movimento. Em contrapartida, as prédicas do líder do arraial, analisadas por Euclides, nunca foram, de fato, lidas pelo autor.
O que explica, então, o êxito de Os sertões junto ao público letrado, à opinião pública, aos críticos literários e aos próprios historiadores? Por que, ainda hoje, afirma-se que, não fosse o livro de Euclides da Cunha, a guerra de Canudos teria sido esquecida, como tantos outros movimentos sociais ocorridos nos sertões do Brasil? Talvez um dos motivos seja, justamente, o caráter abrangente da obra. A multiplicidade de gêneros literários condensa sua capacidade de congregar as mais variadas informações, atitudes e formas de enunciação. Trata-se de uma enciclopédia do sertão, que absorveu centenas de obras anteriores, de diferentes temas e ideologias, dando a eles novas leituras e perspectivas.
Quanto ao caráter ficcional ou não da obra, é possível pensar em um consórcio da ciência e da arte. Diante do desconhecido, Euclides da Cunha lançou mão de métodos e recursos não científicos para conhecer e representar o caráter paradoxal da guerra. Em Os sertões, o recurso à subjetividade, ao exagero, à fantasia, são parte integrante da busca pela verdade. Esse foi o meio utilizado por Euclides para mostrar a multiplicidade de vozes e perspectivas escondidas naqueles sertões. A arte, aqui, ajuda a captar melhor a complexa realidade do sertão.
Euclides da Cunha pode ser identificado, assim, como um “historiador poético”, ou como um “narrador sincero”, para utilizar a referência feita pelo próprio autor ao historiador Hippolyte Taine. Euclides se inspira em Taine ao adotar um modelo escritural que, partindo do projeto de uma literatura científica, propõe a equação entre o imaginado, o visto e o experimentado, com todas as suas contradições. Sua escrita pode ainda ser comparada à de outro historiador, Heródoto, que abre mão da concepção única de fato para admitir versões do acontecido, mesmo que isso implique em narrativas subjetivas ou até mesmo fantasiosas. Isso não significa que Euclides não perseguisse a verdade, apenas que, na busca dessa verdade, admitia a existência de meandros e contradições. Dito de outra forma, a arte também estaria a serviço da busca da verdade histórica.
Os sertões. Capítulo IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo.
Euclides da Cunha
É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro…
A imagem é corretíssima.
Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas, posto em função do meio, assombra. É uma diátese, e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade. (…)
(…) Sertanejos, estamos em guerra
Fiquem com as armas capturadas do inimigo
Mas joguem no mato
Dinheiro e mantimentos dessa gente profana
Antes morrer de fome
Que se envenenar de comida republicana
Do lado de lá do rio
Virá o fogo do inferno
E então será o fim do mundo
Há de cair uma grande chuva de estrelas
E sobrarão muitos chapéus
Para poucas cabeças (…)
Os sertões. Capítulo IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo.
Euclides da Cunha
(…) Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela própria receptividade mórbida do espirito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.
É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade…
Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda: acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos. (…)
(…) Eu vi Antônio Conselheiro
Lá no alto da favela
Com cento e oitenta praças
E mais de mil parabélum
Eu estava na ponta da rua
Eu vi a rua se fechar
Eu vi a fumaça da pólvora
Eu vi a corneta bradar. (…)
Os sertões. Capítulo IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo.
Euclides da Cunha
(…) Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranquilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.
Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva.
Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de atavismo.
A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhe as relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie. (…)
Entre abril e outubro de 1905, Euclides da Cunha teria novamente a oportunidade de experimentar as aventuras de ser um narrador-viajante. Nomeado pelo barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, como chefe da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, na Amazônia, Euclides da Cunha e seus companheiros tinham a missão de solucionar problemas fronteiriços entre Brasil, Bolívia e Peru. Mais uma vez, contudo, o escritor seria arrebatado por um território estranho, vazio, terra inacabada, imprópria à ocupação humana, mas ao mesmo tempo de natureza poderosa, extraordinária. Embora paisagens geograficamente distantes e fisicamente opostas, os sertões da Bahia e a floresta amazônica foram imediatamente conectados pela pena de Euclides.
N’Os sertões, o autor nos apresenta uma terra ignota, cenário do martírio e da subsequente redenção. Inscreveu nesta natureza uma persona dramática capaz de projetar no entrecho de sua narrativa imagens de medo, solidão, abandono, reconhecendo ali a marca do esquecimento secular e coletivo do país. O tipo humano, por sua vez, foi idealizado como homem forte, mistura de cavaleiro medieval e vaqueiro romântico, “rocha viva”, sobre a qual se poderia criar o brasileiro do futuro.
Já em seus escritos amazônicos, Euclides descreveu paisagens imperfeitas, instáveis, tormentosas, impróprias à presença do homem. A natureza era quem ditava o significado e o avanço da civilização na Amazônia. Os sujeitos, por sua vez, não existiam nem para a sociedade brasileira nem para o Governo republicano. Barbaramente explorados e submetidos à toda forma de violência, os seringueiros eram, contudo, os únicos capazes de domar o deserto; eram os verdadeiros conquistadores da Amazônia.
No argumento de Euclides, sertão era principalmente uma imagem de deserto, capaz de surgir tanto no cenário seco, retorcido e violento do arraial de Canudos, quanto em meio à solidão e ao abandono produzidos pelas grandes massas hídricas existentes na fronteira amazônica do Alto Purus: uma paisagem sinistra e desolada que se consome sempre antes de se formar plenamente. Uma terra sem nome ou história, marcada pela articulação lúgubre entre isolamento geográfico, povoamento rarefeito, homens errantes, memória perdida e linguagem dispersa. O sertão era apreendido como solidão, isolamento e perda, força primitiva de uma região ainda em trânsito entre a natureza e cultura, dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição.
Espaços de paisagens fantásticas, que paralisavam o observador, tomado por um misto de terror e êxtase, desilusão e deslumbramento, os sertões baianos e amazônicos eram sociedades insuladas, de povoamento rarefeito, marcadas pelo esquecimento. Para Euclides da Cunha, “a história não iria até ali”. É justamente essa marca de invisibilidade e, por conseguinte, de incivilidade, que o autor pretende romper ao trazer os sertões para a cena pública.
À margem da história. Judas-Asvero. Primeira parte. Terra sem história (Amazônia).
Euclides da Cunha
(…) No sábado da Aleluia os seringueiros do Alto-Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lava-pés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável Sexta-Feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as atividades — despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se os caminhos — e que as luzes agonizam nos círios bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas rezas e nos retiros, caindo um grande silêncio misterioso sobre as cidades, as vilas e os sertões profundos onde as gentes entristecidas se associam à mágoa prodigiosa de Deus. E consideram, absortos, que esses sete dias excepcionais, passageiros em toda a parte e em toda a parte adrede estabelecidos a maior realce de outros dias mais numerosos, de felicidade — lhes são, ali, a existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, do círculo fechado das “estradas”. Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o Redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfreqüentados rincões.
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou- se à desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas sobem por vezes ao céu, levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a divindade; e ele não se queixa. Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas, maciça e inexorável — um grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida — da fatalidade; e submete-se a ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria um esforço inútil. Domina-lhe o critério rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou ingênua, mas irredutível, a entrar-lhe a todo o instante pelos olhos adentro, assombrando-o: é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles brejais, manchando-se. Não lhe vale a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando uma promoção na escala indefinida da bem-aventurança. Há concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, numerosos, e, o que se lhe figura mais eficaz, mais vistos, nas capelas, nas igrejas, nas catedrais, e nas cidades ricas onde se estadeia o fausto do sofrimento uniformizado de preto, ou fulgindo na irradiação das lágrimas, e galhardeando tristezas…
Ali — é seguir, impassível e mudo, estoicamente, no grande isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem — e este pecado é o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua…(…)
O canto mais belo será sempre mais sincero.
Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar.
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade,
ser mais sábio que quem o quer governar!
A novidade é que o Brasil não é só litoral!
É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.
Tem gente boa espalhada por esse Brasil,
que vai fazer desse lugar um bom país!
Uma notícia está chegando lá do interior.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil,
não vai fazer desse lugar um bom país! (…)
À margem da história. Judas-Asvero. Primeira parte. Terra sem história (Amazônia). Euclides da Cunha
(…) Ora, para isso, a Igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinização da vingança.
Mas o mostrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à missão complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos em fora, tão pisoado, tão decaído e tão apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de tantos que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da farragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta.
O judas faz-se como se fez sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa do seu gênio rude longamente trabalhado de reveses; onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda- lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas…
Recua meia-dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.
Em torno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a maravilha.
Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ricto expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e reifica-lhe as vestes…
Novo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos…
E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante…
Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel Ângelo: arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma estrada para toda a Terra. Que a Terra toda contemple o seu infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro…
Embaixo, adrede construída desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura demoníaca apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalhos e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente.
E Judas feito Asvero vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, eriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza. E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem-fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, “de bubuia” sobre as grandes águas.
Não pára mais. À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal” e aperrando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento.
As balas esfuziam-lhe em torno; varam-no; as águas, zimbradas pelas pedras, encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e ele parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, este eco de um anátema vibrando há vinte séculos:
— Caminha, desgraçado!
Caminha. Não pára. Afasta-se no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um estirão retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De súbito, no vencer uma volta, outra habitação: mulheres e crianças, que ele surpreende à beira do rio, a subirem, desabaladamente, pela barranca acima, desandando em prantos e clamores. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios, os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos e tumulto, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles, descendo…
E vai descendo, descendo… Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados…
Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente…
Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando- se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos — lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo descendo (…)
Na literatura de interpretação do Brasil a palavra sertão traz associado um conceito, que revela uma maneira peculiar de narrar o projeto sempre problemático da fundação nacional brasileira a partir dos confins, das margens em que se refletem e se cruzam as dúvidas sobre os dilemas da nossa formação histórica e social. De um lado, sertão indica o processo de formação de um espaço interno, a perspectiva do interior; de outro lado, sertão traduz a configuração de uma realidade política: a condição do desterro, a ausência de leis, a precariedade dos direitos, a inexistência da ordem.
Transcendendo à ideia de uma limitação espacial precisa, a palavra sertão reuniu em si uma alta carga de valores do mundo público, capaz de produzir, dentro da tradição literária brasileira, uma continuidade temática e uma perspectiva original de interpretação do Brasil. Euclides da Cunha, embora não tenha sido o primeiro a lançar mão deste motivo em uma obra literária, o fez sob um novo prisma, colocando em dúvida a existência de um Brasil unitário e homogêneo, revelando um esquecido mundo sertanejo, habitado por párias. Na ficção de Euclides, sertão é solidão, isolamento, perda; terra apartada dos valores do mundo público, do progresso e da racionalidade, dominada pela tradição e à margem da história. Embora incômodas, ou justamente por isso, as imagens criadas por Euclides da Cunha arrebataram os homens nascidos na passagem do século XIX para o XX para a tópica de incorporação dos sertões e consequente encontro com o outro, a partir do qual ocorre um “processo de redescobrimento constante do Brasil”.
As mudanças econômicas, sociais e políticas iniciadas com o Movimento de 1930 demandaram da intelectualidade de então um grande esforço no sentido desse “redescobrimento”. Em Vidas secas, de 1937, Graciliano Ramos expunha a deficiência do modelo de modernização praticado, que não incorporava nem política nem socialmente amplos setores da sociedade. Com uma poética da escassez, a obra atuou a contrapelo do ideal de modernização, denunciando tudo o que estava sendo relegado à margem. O sertão, símbolo maior dessa margem, deixava de ser somente deserto para ser também desterro, lugar dos banidos da República, ou ainda, nas palavras do filho de Fabiano, o próprio “inferno”.
Duas décadas depois, em meio ao governo de Juscelino Kubitschek e de seu ambicioso projeto de modernização, Guimarães Rosa retomaria a imagem de Vidas secas através de seu personagem Riobaldo Tatarana, em Grande sertão: Veredas:
a gente viemos do inferno.
Aqui, as consequências de uma modernização incompleta, excludente, já estão claras: o fortalecimento das cidades desagregava o sertão, e condenava sua gente ao desterro, à desigualdade social, a uma vida sem acesso aos bens, à lei e a um catálogo mínimo de direitos. Guimarães Rosa registrava assim as ruínas, os resíduos de tudo aquilo que o Brasil modernizado não conseguiu aproveitar, e a República descartou por improdutivo, supérfluo, inútil.
Muitos outros escritores podem ser inseridos nesta tradição de um discurso literário tematizador do sertão. Com ferramentas criativas próprias, todos buscam, no entanto, utilizar essa categoria como forma de problematização do real. Ao contar de uma República que é construída longe do que é comum, recriando literariamente os pontos de tensão e ancoragem das relações sociais e de poder estabelecidas nos sertões, apontando o não concretizado do projeto político brasileiro, esses autores estabelecem o limite de um mundo que não pode mais existir. Esses literatos, ou em uma terminologia atual, esses intelectuais públicos, propõe uma releitura intensa de um povo, de um cultura e de uma nação, ambicionando a inclusão das margens na modernidade política, com a expansão do ideal de cidadania.
Os sertões. Capítulo II. Gênese dos jagunços. Uma raça forte
Euclides da Cunha
Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente.
Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante.
Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável.
A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em círculo diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Graz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte “tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha”, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades.
É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização.(…)
Embaixo,
Coleando nas voltas do vale estreito
Já está toda a vanguarda,
Armas fulgurantes, feridas pelo sol,
Feito uma torrente escura
Transudando raios (…)
Os sertões. Capítulo II. Gênese dos jagunços. Uma raça forte
Euclides da Cunha
Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última. O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados.
A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator étnico preeminente transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização.
Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente.
Parabelo, bacamarte
Sofrimento que renega
Desavença que reparte
Entre Rios, Belos Montes
Que distância mais presente
Quanta gente confiante
Em Antônio penitente
Os sertões. Capítulo II. Gênese dos jagunços. Uma raça forte
Euclides da Cunha
É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia.
A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente.
Aparece logicamente.
Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento — nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos; porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior.
Deixemos, porém, este divagar pouco atraente.
Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos.
Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias psíquico-geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou traçando a norma verticalis dos jagunços.
Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas.
Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos. (…)
Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.