1. Perfil biográfico

Catulo da Paixão Cearense (1863-1946)

Durante o século XIX, o violão era considerado no Brasil um instrumento de malandros e boêmios, representante grosseiro da chamada “baixa cultura” própria das chamadas “classes perigosas”. Nesse contexto, muitos acreditavam que música de verdade era apenas a erudita, de origem europeia. Entre as décadas de 1910 e 1930, houve um intenso embate nos círculos intelectuais até que o violão ganhasse respeitabilidade necessária para ser ouvido nos salões e conservatórios do país. Catulo da Paixão Cearense foi um dos responsáveis por vencer o preconceito da elite brasileira contra o violão.

Suas apresentações em salões da alta sociedade e salas de espetáculos eram garantia de casa cheia e ingressos esgotados. Em 1908, realizou um recital que superlotou o auditório do Instituto Nacional de Música, uma das salas de concertos mais aristocráticas do Rio de Janeiro. Na plateia, “músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, diplomatas misturaram-se a populares”. Em 1914, foi convidado pela primeira-dama Nair de Teffé a se apresentar no Palácio do Catete para o presidente da República Hermes da Fonseca. Antes disso, o poeta já havia se apresentado para outro chefe de Estado, Nilo Peçanha, em um cruzeiro presidencial pela Baía de Guanabara. Entre damas com longos vestidos e senhores trajando fraque e casaca, Catulo cantou e recitou as mesmas poesias ouvidas e admiradas pela gente simples do país.

 

Até os anos 1930, o violão era visto como um símbolo de boêmios e malandros. A atuação de Catulo da Paixão Cearense na defesa da cultura popular foi fundamental para que o instrumento ganhasse respeitabilidade no cenário artístico. Sobre esse contexto de quebra de preconceitos, declarou: “O violão não é instrumento que deva ser condenado à triste condição de ser tocado de ouvido. A mesma pauta onde aprendemos o piano, a harpa, o violino, o violoncelo, tem de ser aquela que servirá para o ensino do violão”.
Catulo da Paixão Cearense. Data: (s/d). Acervo: Instituto Moreira Salles. Coleção José Ramos Tinhorão.

Poeta, compositor e cantor, ele foi um dos artistas mais populares de seu tempo. Nascido em São Luís do Maranhão, aos 10 anos mudou-se para o interior do Ceará e aos 17 para o Rio de Janeiro. Enquanto trabalhava no cais do porto, investia seu tempo livre na carreira artística. Nesse período, aprendeu as primeiras noções de flauta e violão. Além de cantar, também se ariscou na poesia. Seu livro de estreia, O cantor fluminense, foi publicado em 1887. Esse foi o primeiro de muitos que alcançaram grande sucesso. O livro O cancioneiro popular, por exemplo, foi reeditado 50 vezes. Como compositor conquistou igual prestígio, tornando-se um letrista hábil em conjugar verso e melodia em uma combinação perfeita entre ritmos, palavras e notas musicais.

Seu nome foi registrado definitivamente na história da canção popular brasileira em 1914, quando o cantor Eduardo das Neves entrou nos estúdios da Odeon para gravar a toada Luar do sertão. A canção, cuja parceria atribuída a João Pernambuco nunca foi admitida por Catulo, funda na tradição da canção popular brasileira a mítica do sonho rural. A paisagem natural, construída por meio da melodia simples e de versos ingênuos, está inscrita na memória cultural do país, graças às sucessivas regravações além das inúmeras citações que retomam, geração após geração, esse mito fundador da nação brasileira.

 

Obras selecionadas:

  • Alma do sertão (1928)
  • Fábulas e alegorias (1911)
  • Florilégio dos cantores (1915)
  • Lyra brasileira (1908)
  • Lyra dos Salões (1908)
  • Mata Iluminada (1924)
  • Meu Sertão (1918)
  • Modinhas (1943)
  • Novos cantares.(1909)
  • O milagre de São João (1943)
  • O sol e a lua (1934)
  • O testamento da árvore (1945)
  • Oração à Bandeira (1938)
  • Poemas Bravios (1921)
  • Sertão em flor (1919)
  • Um boêmio no teatro (s/d)
  • Um caboclo brasileiro (1946)

 

Para saber mais:

ARAUJO, Murilo. Ontem, ao luar: vida romântica do poeta do povo – Catulo da Paixão Cearense. Rio de Janeiro: A Noite, 1950.

LISBOA JR, Luiz Américo. Da modinha ao sertão: vida e obra de Catulo da Paixão Cearense. São Luís: Editora Geia, 2016.

MAUL, Carlos. Catulo: sua vida, sua obra, seu romance. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971.

2. Catulo contra Washington Luís

Catulo da Paixão Cearense foi um dos primeiros compositores a cantar os passos de Getúlio Vargas no cenário político nacional. Em 1930, o autor dos versos de Luar do sertão, aquela altura já consagrado como compositor e poeta de extremo sucesso popular, emprestou seus versos à causa do movimento que colocou Vargas no poder. Nesse ano, ele compôs o hino 24 de outubro, em parceira com Henrique Vogeler, para saudar a data em que foi deposto o presidente Washington Luís.

O cancioneiro popular se encarregou de compor a crônica musical de toda a Era Vargas, com suas polêmicas, reviravoltas, estratégias, conchavos. Evento por evento, fato por fato, emerge na canção popular brasileira, o personagem em suas várias facetas, seja como “pai dos pobres”, “ditador” ou “presidente eleito democraticamente”. Seu nome é ouvido nos gramofones e rádios de todo o Brasil por meio de canções com letras maliciosas, climas de chacota, duplo sentido, elogios, muitos elogios.

No hino 24 de Outubro, os parceiros Catulo da Paixão Cearense e Henrique Vogeler não deixam dúvida sobre o otimismo com que assistiram o levante contra o governo Washington Luís. A revolta civil e militar teve início no dia 3 de outubro em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, estados cujas oligarquias recusaram-se a aceitar a vitória de Júlio Prestes, governador de São Paulo e candidato situacionista, nas eleições presidenciais daquele ano. Inconformados com a quebra da alternância no cargo entre os mineiros e paulistas, realizada pelo próprio Washington Luís, e com a derrota da chapa de oposição formada por Getúlio Vargas (RS) e João Pessoa (PB), os partidários da Aliança Liberal pegaram em armas.

As tropas rebeladas conseguiram rapidamente neutralizar as forças federais por meio do assalto às principais guarnições do Exército e da adesão da soldadesca. Enquanto no Palácio do Catete, Washington Luís demorava a reagir, o impacto da rebelião era maior do que ele poderia supor. Na manhã do dia 24 de outubro o presidente foi detido e conduzido ao Forte de Copacabana. Um mês depois, conduzido ao exílio, para alegria de Catulo da Paixão Cearense que lançou vivas aos líderes do movimento: Juarez Távora, comandante militar do movimento no Nordeste, Getúlio Vargas e os partidários do ex-presidente Floriano Peixoto.

 

Catulo da Paixão Cearense é um dos personagens mais populares de seu tempo. Por essa razão, recebeu diversas caricaturas em revistas e jornais ao longo de sua vida. O artista frequentou os círculos do poder, apresentando-se para cinco presidentes da República – Hermes da Fonseca, Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Getúlio Vargas – com a mesma desenvoltura que frequentava a Casa da Tia Ciata, a Praça Onze, os grupos de Choro, entre outros lugares da boemia carioca do início do século XX.
Catulo da Paixão Cearense nas caricaturas de Monteiro Filho (s/d), Paulo Amaral (1939), Euclides Luís dos Santos (1939), Romano (1921) e Orózio Belém (1939). Acervo: Editora Abril.

Todo o hino 24 de outubro foi composto em forma de elogio, gênero de discurso que ostenta na cena pública a grandeza de uma ação política. Espécie de canto do mundo público, o elogio mostra, propaga, reforça e até mesmo cria o valor que serve como princípio fundante da ação na cena pública. Em se tratando da canção, os próprios autores afirmam ser a liberdade, o princípio que guiou os “generais triunfadores”, responsáveis por unir pampas e sertões contra o despotismo do governo Washington Luís que ameaçava a “República altaneira”. O tom é marcial e os versos são ora cantados, ora declamados em uma interpretação enfática do cantor Gastão Forment.

Após os acontecimentos de outubro de 1930, Getúlio Vargas toma posse como Chefe do Governo Provisório. Com todos os poderes na mão do Executivo, ele dissolve o Congresso, as Assembleias Legislativas Estaduais e as Assembleias Municipais. Políticos perderam seus cargos, os governos dos Estados foram substituídos por interventores e a imprensa de oposição, censurada. Entrava em cena o governo forte e centralizador de Getúlio que seria cantando e decantando pelo cancioneiro popular, pelos menos, durante os próximos quinze anos em que se perpetuaria no poder.

Como se vê, “a liberdade montada num corcel cheio de flores”, como dizem os versos de Catulo da Paixão Cearense e Henrique Vogeler, no hino 24 de outubro ainda tardariam, por muitos anos, a andar pelas terras do Brasil.

 

(…) Vinde a nós, bravos Getúlios,
Destemidos Florianos,
Vós, Juarezes soberanos,
Generais triunfadores. (…) 

3. Do Jeca Tatu ao Jeca Total

Em 1914, com a gravação de Luar do sertão, Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, imortalizaram uma paisagem rural que, em diferentes momentos históricos, foi mobilizada como abrigo para uma “idade do ouro” para o campo. Nesse mesmo ano, em dois artigos, Velha Praga e Urupês, publicados no jornal O Estado de São Paulo, o escritor Monteiro Lobato altera radicalmente essa paisagem ao inserir a figura do trabalhador rural: o caboclo. Na tentativa de produzir uma fissura no que considera como idealização das virtudes rurais – produzida por artistas como Catulo – ele exibe um caboclo sorrateiro, parasita, mudo, sorna. A ignorância, o atraso e a limitação da vida rural são personificados na figura do Jeca Tatu.

O Jeca conquistou grande repercussão no debate que então se fazia em torno da definição do homem do interior e do seu papel na história brasileira. Para uns, Lobato havia denunciado as condições de vida nas decadentes fazendas de café do Vale do Paraíba. Outros irão acusá-lo de antinacionalista e sua descrição do caboclo uma demonstração do desapreço de Lobato pela gente do Brasil.

Monteiro Lobato, ao olhar para esse homem do interior, não via senão a barbárie. Tudo o mais, para ele, era idealização sem nenhum respaldo na realidade. “Caboclismo”, como definiu. Em 1918, os artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo foram reunidos em seu primeiro livro Urupês. O livro sacudiu o mercado editorial da época. Um grande impulso para o aumento de suas vendas foi o discurso de elogio à obra pronunciado pelo senador e então candidato à presidência da república, Rui Barbosa, no Teatro Lírico, em março de 1919. O respaldo político conferido pelo senador ao elogiar a argúcia de Lobato para observar e descrever a vida do homem do campo lançou nacionalmente o nome do escritor.

Catulo da Paixão Cearense seguiu na contracorrente. O poeta e compositor maranhense era reconhecido autor de uma obra capaz de expressar um país genuinamente nacional, resguardado nos grotões do interior do país. Agora, vinham lhe dizer que não era nada daquilo. O Jeca precisava explicar-se. Catulo tomou para si a voz do personagem e por meio dos versos publicados, em 1919, no livro Sertão em flor incluiu Resposta do Jeca Tatu.

Catulo da Paixão da Paixão foi um artista versátil: poeta, cantor, compositor e teatrólogo. Atualmente, ele é lembrado como o autor dos versos de Luar do sertão, mas sua obra poética é vasta. A maioria de seus livros alcançou respeitável número de reedições em uma sociedade com altos índices de analfabetismo. Em meio à influência da cultura francesa na chamada belle époque carioca, Catulo segue por uma vertente sertanista de leitura do Brasil. Ingênua e romanceada, mas muito popular.
Anúncio das obras literárias de Catulo da Paixão Cearense. Data: 19.07.1946. Acervo: Jornal A Noite (Edição Especial).

 

Mas, o interlocutor do Jeca no poema de Catulo, não é Monteiro Lobato e sim Rui Barbosa, o “senadô”, o “candidato”. Esse sim, em sua opinião, dado à estrangeirismos. Nada conhecia da difícil vivência do homem do campo marcada pelo descaso do Estado. Apático, não por preguiça, mas por se ver excluído de qualquer forma de participação política num período em que a proibição do voto aos analfabetos excluía grande parte da população do processo democrático.

Durante o século XIX, o violão era considerado no Brasil um instrumento de malandros e boêmios, representante grosseiro da chamada “baixa cultura” própria das chamadas “classes perigosas”. Nesse contexto, muitos acreditavam que música de verdade era apenas a erudita, de origem europeia. Entre as décadas de 1910 e 1930, houve um intenso embate nos círculos intelectuais até que o violão ganhasse respeitabilidade necessária para ser ouvido nos salões e conservatórios do país. Catulo da Paixão Cearense foi um dos responsáveis por vencer o preconceito da elite brasileira contra o violão.

Suas apresentações em salões da alta sociedade e salas de espetáculos eram garantia de casa cheia e ingressos esgotados. Em 1908, realizou um recital que superlotou o auditório do Instituto Nacional de Música, uma das salas de concertos mais aristocráticas do Rio de Janeiro. Na plateia, “músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, diplomatas misturaram-se a populares”. Em 1914, foi convidado pela primeira-dama Nair de Teffé a se apresentar no Palácio do Catete para o presidente da República Hermes da Fonseca. Antes disso, o poeta já havia se apresentado para outro chefe de Estado, Nilo Peçanha, em um cruzeiro presidencial pela Baía de Guanabara. Entre damas com longos vestidos e senhores trajando fraque e casaca, Catulo cantou e recitou as mesmas poesias ouvidas e admiradas pela gente simples do país.

Em 1975, o compositor e intérprete Gilberto Gil retomou o personagem criado por Monteiro Lobato, em 1914, na canção Jeca Total. O Jeca Tatu será referência para elaboração desse novo homem capaz de colocar-se em cena pela via democrática e representativa. O Jeca Total de Gilberto Gil não se limita a debater com seu representante no Senado. Ele ocupa o senado e, com ele, importante parcela da população excluída da participação política. Não precisa que lhe deem voz, como fez o poeta Catulo. O compositor irá retirá-lo dos grotões e o localizar no centro das decisões políticas, no “olimpo da imaginação”, como afirmou.

 

 

 Urupês
Monteiro Lobato

(…) Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. (…)

O caboclo continua de cócoras, a modorrar…

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.

Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie. (…)

Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! (…)

Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longe. (…)

O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempre terras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos. (…)

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, (…)

Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.

Só ele, no meio de tanta vida, não vive (…)

 

 A resposta do Jeca Tatu
Catulo da Paixão Cearense

Seu doutô venho!… Venho dos brêdo,
só prá móde arrespondê
toda aquela fardunçage
que vancê foi inscreve. (…)

Nós tudo já tá cansado
desta vida de rocêro,
prá dá mio a tantu galo
que só canta no polêro.

Meu patrão e os cumpanhêro
só leva a falá de lêzes,
que é uma grande trapaiada,
imquanto nós leva a vida
surrando as mão c’um inxada.

Cum toda essa mapiáge,
vassuncê, seu senadô,
nunca mais se alembrou
que lá, naquelas parage,
a gente morre de sede
e de fome… sim sinhô!
Vassuncê só abre o bico,
pra cantá cumo um cancão,
quando qué fazê seu ninho
nos gáio d’uma inleição! (…)

Preguiçoso?! Mandracêro!?
Não, sinhô, seu Conseiêro!!

É pruquê vancê não sabe
o que sêje um boiadêro
criá com tanto cuidado,
cum tanto amô e alegria,
umas cabeça de gado,
e, despois, a impidimia
carregá tudo, cum os diabo,
im mêno de quatro dia! (…)

 

(…) Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Presente, passado
Representante da gente no Senado
Em plena sessão
Defendendo um projeto
Que eleva o teto
Salarial no sertão (…)

4. Luar do sertão,

topos da canção popular brasileira

A canção Luar do sertão, gravada em 1914 por Eduardo das Neves, é um dos marcos da produção fonográfica brasileira. A composição, criada por Catulo da Paixão Cearense em parceria com o violonista João Pernambuco, é retomada por inúmeros interpretes ao longo dos seus mais de cem anos, sendo responsável por fundar, na tradição da canção popular, a mítica do Brasil rural. Ou seja, ela criou um topos, vale dizer, um tema recorrente na literatura brasileira, capaz de modelar uma ideia de país arraigado ao mundo agrário. Luar do sertão conformou uma espécie de caminho mítico em direção a uma pátria baseada na relação de equilíbrio entre o princípio da natureza e a virtude dos moradores do campo. De muitas maneiras, a canção evoca o desenho de um Brasil mais puro, mais próximo de uma natureza atemporal, feito de coisas simples, compartilha valores comunitários e que tem como sonoridade o violão.

Luar do sertão, e toda uma linhagem de canções inaugurada por ela, seria uma espécie de abrigo frente ao avanço da modernização. Nesse sentido, a canção mergulha no fundo do Brasil para escutar o lamento e as angustias de uma gente à procura de refúgio diante de um horizonte incerto. Certa vez, em uma entrevista, por volta de 1940, Catulo declarou:

Sou um sertanejo sem sertão.

A condição do exilado em sua própria terra é tópica presente em nossa literatura desde o século XVIII, quando Cláudio Manuel da Costa representou a si próprio como um poeta vagando pela pátria, consciente de sentir-se “na própria terra peregrino”.

O autor da letra de Luar do sertão retoma a Canção do exílio, poema escrito por Gonçalves Dias, em 1846, ao utilizar o mesmo tipo de contraposição presente nos versos

As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá

em que o sugere uma projeção utópica da pátria e o , o lugar de onde canta o exilado. Já em Luar do sertão a contraposição é reatualizada por Catulo da Paixão Cearense nos versos

O luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão.

Um século após sua gravação original, Luar do sertão ainda embala os sonhos de um Brasil mítico, independente de sotaques, culturas, condições econômicas, posições sociais, áreas geográficas e, sobretudo, gêneros musicais. Mesmo hoje, muitos são os elementos presentes na realidade brasileira que mantem viva no imaginário popular a mítica do sonho rural, tornando os versos da canção atuais: o êxodo rural gerado por catástrofes climáticas; a manutenção da indústria da seca no caso do Nordeste; a batida em retirada em direção aos grandes centros urbanos do país em busca de melhores dias; a expectativa pelo dia do retorno ao lugar de origem e a esperança do reencontro com os entes queridos.

 

A primeira gravação de Luar do sertão foi realizada por Eduardo das Neves, em 1914. Em pouco mais de cem anos, a canção é uma das mais regravadas da história da música popular no Brasil. A versão original da letra possui doze estrofes. Contudo, ao longo do tempo, os intérpretes selecionavam seus versos preferidos até se convencionar pela versão consagrada atualmente, com apenas três estrofes. O refrão, contudo, permaneceu sempre inalterável: “Não há, ó gente, ó não/ Luar como esse do sertão”.
Capa do disco Luar do sertão de Paulo Tapajós. Gravadora: Sinter. Data: 1955. Acervo: Discoteca Pública de Belo Horizonte.

Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco ajudaram a construir a trilha sonora desse percurso. Luar do sertão é um dos muitos hinos daquele que reluta em aceitar a condição do desterrado, do desenraizado, do apátrida. Decisão crucial em que o sertanejo abandona a terra natal, deixa suas certezas de lado e começa a mais difícil caminhada de sua vida: torna-se um viajante em errância, vivendo a esmo nas estradas do Brasil. Em busca de uma pátria que ainda não existe por completo.

 

 

 Canção do exílio
Gonçalves Dias

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

 

 Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Oh! que saudade do luar da minha terra
Prateando lá na serra folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão. (…) 

5. Rasga o coração

Catulo da Paixão Cearense era um artista com grande habilidade em trabalhar com diferentes linguagens narrativas. Sua obra possui como marca característica a versatilidade com que combina poesia, canção e música. Para tanto, possuía um ouvido apurado e uma percepção aguçada para descobrir as potencialidades oferecidas por uma melodia. Atuou como “letrista”, termo utilizado atualmente para definir o trabalho do compositor responsável por encaixar o texto poético às notas musicais. Esse é o caso, por exemplo, da canção Rasga o Coração (Iara), parceria com Anacleto de Medeiros, apropriada pelo maestro Heitor Villa-Lobos e o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho em suas respectivas obras anos depois.

Iara era um tema instrumental, composto em forma de xote por Anacleto de Medeiros, por volta de 1896. Quando recebeu a letra escrita por Catulo da Paixão Cearense, Iara já era uma peça obrigatória no repertório das bandas do início do século XX. Ele também adaptou o seu formato musical do xote para a modinha, além de rebatizá-la com o título Rasga o coração, após a gravação do cantor Mário Pinheiro, em 1910. Os versos de Catulo preenchem com palavras o canto da Iara, criando uma atmosfera de sacralização da natureza nacional e do sentimento de pesar diante da separação do ser amado.

Villa-Lobos, em homenagem à Catulo da Paixão Cearense e Anacleto de Medeiros, utilizou a canção Rasga o coração (Iara) em seu Choros Nº10, para orquestra e coro misto, composto em 1926. Para muitos, esse seria o ponto de maior relevo da série Choros e um dos grandes momentos da trajetória de Heitor Villa-Lobos.

 

O dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho utilizou a modinha Rasga o coração (Iara), de Catulo da Paixão Cearense e Anacleto de Medeiros, gravada originalmente em 1910, como mote para a escrita da peça encenada, em 1979, no Teatro Villa-Lobos, Rio de Janeiro. Coincidência ou não, o maestro modernista utilizou essa mesma canção em seu Choros nº 10, composto em 1926. Ao reapropriarem Rasga o coração (Iara) esses artistas propuseram em suas obras, cada um a seu modo, diferentes interpretações do Brasil.
Cartaz da peça teatral Rasga coração. Autor: Romero Cavalcante. Data: 1979. Acervo: Projeto República/UFMG

Outro artista que propôs uma interpretação do Brasil, tendo por mote a canção de Catulo e Anacleto, foi o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, na peça teatral Rasga Coração, encenada em 1979. Nesse espetáculo, Vianninha apresenta uma leitura da história do país desde a chegada de Getúlio Vargas ao poder em outubro de 1930, até o contexto da ditadura militar no início dos anos 1970. A narrativa é construída a partir das expectativas, esperanças, frustrações e angústias dos personagens Manguari e Luca em relação ao contexto político, mas também pelo difícil relacionamento vivido entre pai e filho. Os diversos planos narrativos, espaços cenográficos, tensões psicológicas e tempos históricos articulados pelo dramaturgo convergem simultaneamente na canção de Catulo e Anacleto de Medeiros, ponto de intercessão capaz de costurar o enredo da peça. Vianninha utiliza Rasga Coração (Iara) como uma espécie de convite ao público:

Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
refletindo a prismatização da luz solar
rasga o coração, vem te debruçar
sobre a imensidão do meu penar.

Esse “penar”, contudo, poderia ser lido como o sentimento próprio a personagens que sonharam com transformações políticas, culturais e sociais que, no entanto, não se realizaram. A dor de Manguari, por exemplo, corresponde às derrotas políticas como militante comunista, mas também em relação ao rompimento definitivo com o filho Luca. A imagem do coração na obra de Vianinha simboliza a unidade quebrada pelo desenrolar dos conflitos políticos e pessoais. O coração é associado aos sentimentos e emoções como o afeto entre pai e filho e também ao amor pátrio desenvolvido pelo personagem em relação ao Brasil. Recordar, ou seja, “trazer de volta ao coração”, seria lembrar-se das relações de afeto e também de um país, pátria ou nação, que se perderam.

 

 

 Rasga Coração
Oduvaldo Vianna Filho

PRIMEIRO ATO

Todos em cena. Semi-obscuridade. Milena e Camargo Moço cantam. Um foco de luz abre sobre eles. Outro foco de luz do presente abre sobre Custódio Manhães Jr. (Manguari Pistolão) e Nena, sua mulher. Sentados à mesa do apartamento, onde há recibos, cadernos, lápis, fazem as contas do mês. As músicas, à medida que aparecem, se misturam.

Os três
Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
refletindo a prismatização da luz solar
rasga o coração, vem te debruçar
sobre a imensidão do meu penar. (Voltam a repetir sempre baixo)

Castro Cott. (Abre foco sobre ele. Uniforme integralista. Capacete à Mussolini, bandeira do sigma. Canta)
Avante. Avante
Eis que desponta o arrebol
Marchar que é a primavera
O que a Pátria espera
É um novo sol!
Hino da Ação Integralista Brasileira, letra do Dr. Plínio Salgado.
Anauê! (Repete o hino baixo. Foco decresce sobre ele. Abre em Lorde Bundinha) (…)

 

(…) Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
Refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o coração, vem te debruçar
Sobre a vastidão do meu penar (…)

6. Atividades propostas

Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.

 

Poesia & Prosa – Atividades – Catulo da Paixão Cearense