1. Perfil biográfico

Clarice Lispector (1920-1977)

Presença marcante: pela altura, porte, costas largas e mãos grandes de dedos longos. Maçãs de rosto salientes. Olhos oblíquos ora verdes, ora escuros, mas sedutores: “olhos de piscina” segundo feliz expressão de Manuel Bandeira. Amiga, para os amigos. Um tanto estranha para vizinhos que a enxergavam à distância. É escritora, mas escritora que não aceita ser profissionalmente para assim melhor lidar com a liberdade da criação. Sente satisfação em fazer parte da literatura brasileira:

fiz da língua portuguesa minha língua interior, meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.

Chama-se Haia, em português, Clarice, pertence a uma família de judeus russos-ucranianos vindo para o exílio porque é o que o pai, Pinkus, vê como alternativa aos ataques por parte tanto dos bolcheviques quanto dos demais grupos políticos anti-semitas. Nasce em 1920, quando já estão viajando para a América e chega a Maceió depois de um ano e três meses: em março de 1922. Passa sua infância em Recife com pouco dinheiro e com a ausência da mãe, que morre quando Clarice tem nove anos. Foi onde aprendeu a ler e a escrever, onde cria seus primeiros textos, logo quando é alfabetizada. Os prazeres do corpo e o cultivo de sensações surgem desde a infância, experiências da intimidade que serão a matéria prima de sua escrita. A relação íntima com a literatura, no sentido de obedecer a uma vocação do ‘escrever para tentar entender o que estou querendo dizer’, como dizia, já parece consolidada na sua mocidade.

Em 1939, Clarice Lispector ingressou na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, formando-se em 1943. A escritora, contudo, nunca chegou a exercer a profissão.
Carteira de estudante do 5º ano da Faculdade Nacional de Direito. Acervo particular Paulo Gurgel Valente. Retirado de: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. São Paulo: 2014, p. 152.

Sua juventude, no final dos anos 1930 e início dos anos 1940 é rica em vivências. Muda-se para o Rio de Janeiro em 1935, ingressando na Faculdade de Direito da então Universidade do Brasil (atual UFRJ), em 1939. Lá conhece um colega, com quem se casa em 1943. Maury Gurgel Valente é um diplomata com quem mora fora do país por longos, e por muitas vezes solitários, quinze anos. Também é o pai de seus dois filhos, Pedro e Paulo, nascidos na Itália e nos EUA, respectivamente. Volta a viver no Brasil em 1959, já separada do marido e, a partir de 1964, com a ditadura militar instituída, exerce uma militância política discreta.

O fato de escrever com a máquina ao colo e crianças trançando de um lado para outro reflete uma capacidade de conciliação entre uma vida estritamente familiar e a vida de escritora, sempre mantendo por perto seu cão Ulisses. Clarice escreve como vive. Daí o leitor ter uma sensação de que o que ali se expõe ou se mostra não é propriamente a execução de um projeto, mas o resultado inevitável de uma experiência em processo. E é por essa razão que lhe é possível também, e paralelamente, pensar sobre o que produz. Escreve uma literatura suicida, que capricha em esgotar a potencialidade da linguagem até a última gota, destituindo-a de sentido, até atingir a morte da palavra, quando dela não mais precisa, mergulhando então no silêncio.

Em 1977, mesmo ano de publicação do livro A hora da estrela, concede seu único registro áudio-visual, uma entrevista à Julio Lerner, da TV Cultura, que pede para ir ao ar de maneira póstuma. Em dezembro, vítima de um câncer no ovário diagnosticado tardiamente, morre ao lado de sua amiga Olga Borelli, para quem sete anos antes havia escrito que esperava tê-la por perto nesse momento. Como disse o poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade em Visão de Clarice (1977), ela veio de um mistério e partiu para outro, talvez o mistério não era essencial. Deixemos para compreendê-la depois.

 

 

Obras completas:

Romances

  • Perto do coração selvagem (1943)
  • O lustre (1946)
  • A cidade sitiada (1949)
  • A maçã no escuro (1961)
  • A paixão segundo G.H. (1964)
  • Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)
  • Água viva (1973)
  • Um sopro de vida – Pulsações (1978)

 

Novela

  • A hora da estrela (1977)

 

Contos

  • Alguns contos (1952)
  • Laços de família (1960)
  • A legião estrangeira (1964)
  • Felicidade clandestina (1971)
  • A imitação da rosa (1973)
  • A via crucis do corpo (1974)
  • Onde estiveste de noite (1974)
  • A bela e a fera (1979)

 

Literatura infantil

  • O mistério do coelho pensante (1967)
  • A mulher que matou os peixes (1968)
  • A vida íntima de Laura (1974)
  • Quase de verdade (1978)
  • Como nasceram as estrelas (1987)

 

Crônicas

  • Visão do esplendorImpressões leves (1975)
  • Para não esquecer (1978)
  • A descoberta do mundo (1984)

 

Para saber mais:

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

MOSER, Benjamin. Clarice. São Paulo: CosacNaify, 2009.

2. A hora da estrela

A diretora Suzana Amaral, a intérprete Maria Bethânia, o compositor e intérprete Caetano Veloso. Por esses, assim como por vários outros artistas, a obra de Clarice Lispector foi apropriada e (re)interpretada. Adaptada e transformada. Virou filme, canção, poema, teatro. Ao ser reelaborada por outras linguagens artísticas, ampliou-se o impacto produzido por sua literatura. Seu livro A hora da estrela, publicado em 1977 quando a autora ainda estava viva, foi apropriado por essas diversas formas ao longo dos anos. Ao se transformar em outra linguagem cria-se outros signos.

 

O espetáculo Perto do Coração Selvagem estreou em 1965, no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Produzido por Carlos Kroeber e dirigido e adaptado por Fauzi Arap,
a peça foi a primeira a basear seu enredo em textos de Clarice Lispector: Perto do Coração Selvagem, A paixão segundo G.H. e A legião estrangeira. Clarice Lispector participou inúmeras vezes dos ensaios da peça, fazendo críticas e dando sugestões. Na foto, da
esquerda para direita, Fauzi Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice Lispector e Dirce Migliaccio.
Estúdio Foto Carlos. Centro de Documentação da Funarte. 1965.

Em 1985, Suzana Amaral adapta A hora da estrela para o cinema, criando um longa-metragem de mesmo nome. Suzana declara: “Prefiro basear-me em obras já prontas e, depois dar a minha versão, criando uma nova obra a partir da original”. Com isso, reafirma personagens e figuras do texto de Clarice, mas também produz o novo, acrescenta elementos. O novo olhar para obra de Clarice rendeu o prêmio de melhor atriz do Festival de Cinema de Berlim (1986) para Marcélia Cataxo, por sua interpretação da personagem Macabéa, e de melhor diretora para Suzana Amaral no Festival de Havana de 1986.

Em 1984, foi a vez do livro de Clarice ganhar os palcos de teatro. O diretor Naum Alves de Souza estreia o musical A Hora da Estrela, com interpretação de Maria Bethânia. Para esse espetáculo Caetano Veloso compõe a canção A hora da estrela do cinema – sobre Macabéa – e em parceria com Wally Salomão a canção Campeão Olímpico de Jesus – sobre Olímpico – único namorado de Macabéa. Essas canções foram incorporadas por Maria Bethânia ao LP A beira e o mar, lançado também em 1984 e a elas, a intérprete acrescentou a canção também baseada na obra Pra eu parar de me doer, de Milton Nascimento e Fernando Brant.

Na sua única entrevista em frente às câmeras, concedida a Julio Lerner da TV Cultura já em 1977, Clarice parece anunciar sua morte eminente quando lhe perguntaram “Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?”, e ela responde:

Bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando de meu túmulo.

Contudo sua obra permanece viva, sendo lida, revivida, reinterpretada e transformada.

 

 

 

 

 A hora da estrela
Clarice Lispector

(…) Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. “Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. (…)

Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta — se lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem que o corpo, se alucinaria e explodir-se-lhe-ia o organismo, braços pra cá, intestino para lá, cabeça rolando redonda e oca a seus pés — como se desmonta um manequim de cera. (…)

 

(…) A hora da estrela vai chegar
Agora ninguém vai duvidar
Não hoje, não mais
Nem nunca, jamais (…)

 

 Visão de Clarice Lispector
Carlos Drummond de Andrade

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice (…)

 

(…) Há uma certeza em mim, uma indecência:
Que toda fêmea é bela
Toda mulher tem sua hora
Tem sua hora da estrela
Sua hora da estrela de cinema (…)

3. As mulheres em Clarice

Uma paisagem de sensações. O cotidiano, a intimidade feminina, o desejo da mulher. O primeiro conto ficcional de Clarice publicado na imprensa – Triunfo (1940) no semanário Pan – já tematizava sobre essas questões, que serão recorrentes na sua produção. De forma discreta, ela contestava o estereótipo social estabelecido para as mulheres nos anos 1960/70 desde sua vida pessoal, ao buscar sua autonomia financeira sem deixar de lado a vida de casa e o cuidado de seus filhos; e em sua escrita, através principalmente de suas personagens.Virginia Woolf é apontada como uma de suas principais influências e, Simone de Beauvoir – uma das mais importantes escritoras feministas do século XX – se encontrava entre a sua lista de leituras. Além disso, em uma crônica insere trechos de Mary Wollstonecraft, autora do livro Uma reivindicação pelos direitos da mulher, de 1792.

 

Página feminina escrita por Clarice Lispector a partir de 1952, no jornal Comício, sob pseudônimo de Tereza Quadros. Além de escrever os textos, a autora selecionava as ilustrações.
Jornal Comício, 08 de agosto de 1952.

Desde 1952 assume, sob variados pseudônimos, colunas femininas em jornais. Na contramão do que se esperava dessas secções – na imprensa dos anos 1950 e 1960 (e ainda hoje) – que se dedicavam a dicas de beleza, receitas culinárias e conselhos amorosos, Clarice subverte o lugar da mulher nas entrelinhas, através da escrita questionadora e às vezes irônica, ao tratar de temas considerados exclusivos do universo feminino. Em seus livros, cria personagens que não se encaixam nos papéis de mãe esposa; vivem em conflito com as convenções e regras estabelecidas, que não correspondem ao tipo considerado ideal, que estão em busca de sua própria identidade e liberdade. Em 1974 escreve um de seus livros mais polêmicos, A via crucis do corpo, que lhe rendeu críticas quando lançado. Nesses contos cria personagens que são uma stripper, uma freira tarada, uma sexagenária com um amante adolescente, um casal de lésbicas assassinas, uma senhora idosa que se masturba, dentre outras, confrontando o padrão de gênero. Em resposta às críticas Clarice afirma:

Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo.

Esse livro pode ser considerado uma exceção dentro do espectro de sua produção. No geral, é nas entrelinhas, narrando o cotidiano e os sentimentos, que questiona o lugar da mulher, se negando a reproduzir estereótipos reducionistas.

É importante ressaltar o que significa termos Clarice. Na nossa sociedade, até nos dias atuais, é notória a dificuldade para que autoras consigam publicar suas obras e para que sejam reconhecidas por importantes instituições, como a Academia Brasileira de Letras que possui apenas oito mulheres membros dentre centenas de homens. Nesse cenário, muitas recorriam à pseudônimos masculinos, o que não é caso de Clarice. Com suas personagens ela questiona o privilégio “exclusivo” da representação do gênero masculino. Usa das particularidades que reconhece como sendo do gênero e do sexo feminino para compor a subjetividade de sua obra.

 

 

 

 A fuga
Clarice Lispector

(…) Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer agora?” Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do “Lar Elvira”, aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: “Você não voltará”. Apaziguou-se.

Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: “Bem, as coisas ainda existem”. Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituíam-na quase inteira a si mesma: – primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam. Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar. (…)

 

(…) Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração
Clarice era morena
Como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito (…)

 

 O búfalo
Clarice Lispector

(…) Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar — seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, à vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói… oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se — enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.(…)

 

 Brincar de pensar
Clarice Lispector

(…) a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender (…)

 

 A surpresa
Clarice Lispector

(…) Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.

Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo. (…)

4. Personagens bichos

A intimidade selvagem perdida

O amor de Clarice Lispector pelos animais é evidente tanto na sua vida pessoal quanto na sua escrita literária, muitas vezes usando-os a fim de exprimir comportamentos fora do padrão social. Exprimem liberdade. Dilermando, seu vira lata que é obrigada a deixar para trás quando se muda da Itália, será a raiz do conto, O crime do professor de matemática (1960). Posteriormente, Ulisses, outro de seus cachorros, é o protagonista do livro infantil Quase verdade (1978). Contudo, a relação de Clarice com os bichos não se resume ao seu amor por cachorros. Ela os compara à seus personagens: G. H. com uma barata, Joana com uma víbora, Lucrécia com um cavalo, Martim com uma vaca.

A barata está presente em várias de suas obras. Em Perto do coração selvagem (1943) representa a amoralidade de Joana; em A cidade sitiada (1949) Lucrécia se identifica com o inseto. Em A paixão segundo G.H. (1964), compara a gosma branca que sai da barata com a placenta, onde se confundem as fronteiras do humano e do animal. E em sua obra jornalística, sempre surgem de maneira incomum. Em G.H. diz:

O que eu sempre repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais.

Personifica-as e ressalta: a barata é feminina. Mas, explica o porquê: “Eu só a pensara como fêmea pois o que é esmagado pela cintura é fêmea”. Fascina por ser o animal que consegue sobreviver durante milênios, sob os escombros da civilização, representando esses fantasmas que, ao serem encarados, são ao mesmo tempo terríveis e encantadores.

Outro animal importante na sua narrativa é a galinha: “Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos”. Comer a galinha de estimação é gesto de como o mundo é o lugar onde todos comem uns aos outros. É através desse animal que pensa sobre o destino de sua mãe e o seu próprio, sobre o envelhecimento e sobre a morte. Para Clarice, a galinha, assim como a humanidade, não podem ser curados, ambos tem mania de grandeza. A galinha por sua vez é sozinha no mundo, é oca.

 

Desde suas primeiras obras, Clarice Lispector adotou o método de anotação imediata. As anotações eram feitas em qualquer tipo de papel, o que estivesse à mão, como fragmentos, folhas de cheque e envelopes. Quando as notas chegavam a um volume satisfatório, a autora passava a trabalhá-las, a “concatenar as inspirações”, como ela mesma dizia. As notas aqui apresentadas foram utilizadas na novela A hora da estrela, de 1977.
Instituto Moreira Salles | Acervo Clarice Lispector

Falar em Clarice Lispector é falar da barata ou da galinha ou do cavalo. A força animal em sua escrita é um devir: não é uma correspondência, não é uma imitação. É a revelação de um animal interior que nos habita. Através dos animais expõe as angustias e as entranhas do ser humano. Como diz Silviano Santiago, “Em toda sua plenitude de solidão, liberdade e felicidade, na ficção de Clarice a vida é animal e humana, pulsa, move-se e é selvagem”. Assim, os bichos em Clarice são a intimidade selvagem do ser humano livre das convenções da cultura e da sociedade, algo que ela crê valer a pena de se revisitar, como uma forma de sobrevivência.

 

 

 

 Nossa truculência
Clarice Lispector

Quando penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando minhocas. Deveríamos não comê-las e ao seu sangue? Nunca. Nós somos canibais, é preciso não esquecer. É respeitar a violência que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue. Minha falta de coragem de matar uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue. É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculência. É amor também. (…)

 

 A partida do trem
Clarice Lispector

Ulisses, se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, seria monstruoso e feio. Era lindo sob o ponto de vista de cão. Era vigoroso como um cavalo branco e livre, só que ele era castanho e suave, alaranjado, cor de uísque. Mas seu pêlo é lindo como o de um energético e empinado cavalo. Os músculos do pescoço eram vigorosos e a gente podia pegar esses músculos nas mãos de dedos sábios. Ulisses era um homem. Sem o mundo cão. Ele era delicado como um homem. Uma mulher deve tratar bem o homem. (…)

 

(…) Perto do teu coração selvagem
Eu caio ao cair da tarde
Trazendo a alma em febre de noite alta

Fico ao longo da tua margem
Que a onda de ti divague
Na minha aspereza nua (…)

 

 Um sopro de vida
Clarice Lispector

O meu cão me ensina a viver. Ele só fica “sendo”. “Ser” é a sua atividade.
E ser é minha mais profunda intimidade. (…)

 

 Água viva
Clarice Lispector

(…) Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim:
parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho.
E confundo-me toda.
Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que
diante do bicho sou obrigada a assumir. (…)

5. Literatura infantil

Liberdade e imaginação é o que inspira a literatura infantil de Clarice. É onde cria uma visão de mundo nova e inusitada, propondo uma releitura do real. Seu primeiro livro para crianças foi escrito a pedido de seu filho Paulo, em 1956 quando ainda moravam nos EUA, escrito originalmente em inglês. Só dez anos depois – já no Brasil – que O mistério do coelho pensante vai ser publicado, em português. Seu segundo livro infantil, A mulher que matou os peixes (1968), surge de uma história vivida pela autora com seu filho Pedro. É como mãe que ingressa na literatura infantil.

Renuncia às normas da produção de literatura infantil: o “era uma vez” e os contos de fada. Rompe com o que distancia a história da realidade e do cotidiano; com os clichês linguísticos, sociais e morais, provocando o leitor, elaborando novos caminhos para o conhecimento. Cria uma horizontalidade, deixa espaço para as contribuições orais. Diz Clarice, em 1981:

Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir, por experiência própria, que a parte oral desta história é o melhor dela

Quer brincar ludicamente com o mundo, com as palavras, com o corpo e com o próprio pensamento. De seus cinco livros infantis um foge brevemente desse padrão. Como nasceram as estrelas – doze lendas brasileiras, publicado post mortem, em 1987, foi criado sob encomenda da fábrica de brinquedos Estrela para confecção de um calendário. Enquanto nos outros livros tem-se o suspense, a interação autor-leitor, nesse o enredo já é bem mais direto. Aqui ela trata do universo popular, permeado por elementos do folclore brasileiro, deixando de fora o rompimento com a cultura, o descontentamento. Reúne narrativas herdadas da tradição, contudo, a reflexão está presente, junto com seu “eu” comentarista e questionador, deslocando o final moral tradicional, e inserindo a sua marca pessoal na história que escreve. De certa forma, faz uma leitura do folclore nacional à sua maneira.

 

Lançada em 1959, a revista mensal Senhor traria inúmeras inovações para o mercado editorial da época: a revista contaria com contribuição de grandes intelectuais e artistas para discutir, de maneira arrojada, cultura, política e economia. Clarice Lispector foi convidada, ainda em 1958, para fazer parte desse projeto: publicou com grande frequência contos e crônicas, que marcariam profundamente sua carreira.
Revista Senhor, março de 1960, ano 2, nº 3. Acervo Projeto República.

A literatura infantil para ela deixa de ser um instrumento de dominação do mundo adulto. Propicia ao leitor a reflexão e busca estabelecer uma relação de cumplicidade, ao contar a história diretamente pra criança, como se estivessem conversando. Ela a chama para dentro da narrativa, para também ser personagem. Foge da tradição da literatura infanto-juvenil que usa esse espaço para modelar, disciplinar e reproduzir padrões sociais. Clarice dá ouvidos ao mundo dos afetos, da imaginação, da criatividade; enfim, do desejo da criança.

 

 

 

 A perigosa Yara
Clarice Lispector

(…)  Enquanto isso, Yara, confiante no seu encanto, esperava que o índio tivesse coragem de casar-se com ela. Pois — ainda nesse mês de florido e perfumado maio — o índio fugiu da taba e de seu povo, entrou de canoa no rio. E ficou esperando de coração trêmulo. Então — então a Yara veio vindo devagar, devagar, abriu os lábios úmidos e cantou suave a sua vitória, pois já sabia que arrastaria o Tapuia para o fundo do rio.

Os dois mergulharam e advinha-se que houve festa no profundo das águas.

As águas estavam de superfície tranqüila como se nada tivesse acontecido. De tardinha, aparecia a morena das águas a se enfeitar com rosas e jasmins.

Porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava.

Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.(…)

 

(…) A Iara, a que dorme
Na vitória régia
Ai daquele que cái na tragédia
Da nudeza da sua voz (…)

 

 A mulher que matou os peixes
Clarice Lispector

(…) Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.

Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?

E eu respondo:

– É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer. Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me dêem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” – em casa chamávamos os peixes de “vermelhinhos”. (…)

 

 

 A vida íntima de Laura
Clarice Lispector

(…) Eu sei que você nunca viu Laura. Mas se você já viu uma galinha meio marrom, meio ruiva, e de pescoço muito feio é como se você estivesse vendo Laura. Vai sempre existir uma galinha como Laura e sempre vai haver uma criança como você. Não é ótimo? Assim a gente nunca se sente só. Pena que Laura não goste de pessoa alguma. Ela quase nunca tem sentimentos, como eu disse. Na maioria das vezes tem o mesmo sentimento que deve ter uma caixa de sapatos. (…)

Talvez ela pudesse explicar que gosto tem minhoca. Mas não é fácil explicar o gosto que se tem na boca. Por exemplo: experimente explicar o gosto do chocolate. Viu como é difícil? É gosto de chocolate mesmo.

Você sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como é que eu sei que Ele gosta? É o seguinte: se Ele não gostasse de galinha, Ele simplesmente não fazia galinha no mundo. Deus gosta de você também senão Ele não fazia você. Mas por que faz ratos? Não sei. (…)

6. Atividades propostas

Nessa seção, estão disponibilizadas atividades didático-pedagógicas para uso do professor em sala de aula que articula a obra literária do autor à um conteúdo multimídia selecionado. Têm como objetivo criar novos dispositivos para o fomento da cultura brasileira, em especial, com a divulgação da poesia escrita e cantada produzida em nosso país. Se, de fato, abrir um livro de poesia e/ou prosa é como abrir uma janela, como comentava o poeta Mário Quintana, as atividades aqui propostas, destinadas ao professor de ensino médio, terá cumprido seu papel se contribuir para que novas paisagens possam ser cotidianamente descortinadas em nossas salas de aula.

 

Poesia & Prosa – Atividades – Clarice Lispector